Menina de onze anos que teve direito ao aborto negado pela família, está grávida novamente

Estuprada pelo primo e pelo tio, a menina deu à luz em setembro de 2021 e agora espera outro bebê 

 

Por onde começar quando uma menina de onze anos de idade volta a ser estuprada e engravidada após ter o direito legal ao aborto negado pela própria família?

Começo dizendo que, conforme previu o dramaturgo e teórico político alemão Bertold Bretch, está ficando cada vez mais cansativo defender o óbvio; ter que reafirmar dia após dia que crianças não podem ser mães e que a culpa da violência nunca é do violentado e que, portanto, a vítima não deve pagar pelo que sofreu.

A jornalista Yala Sena, da Folha de São Paulo, publicou uma reportagem sobre este caso assustador. A menina de Teresina, capital do Piauí, foi violentada sexualmente por um primo de 25 anos em janeiro de 2021. Além de todos os traumas e do sofrimento evidente, o resultado do estupro foi uma gravidez. A mãe da criança, dona de casa de 29 anos, não autorizou o procedimento de aborto legal em caso de estupro de vulnerável.

Estes são os fatos primeiros, mas o que preciso questionar aqui é o motivo pelo qual a mãe e figura de cuidado da vítima tomou esta decisão. Um médico a alarmou que o aborto oferecia risco de morte à criança. Ele desconsiderou todos os impactos nefastos que uma gestação tão precoce pode provocar, desde os aspectos físicos até as marcas traumáticas impressas no desenvolvimento psicológico de uma menina de onze anos de idade. Ele não alertou a mãe sobre o risco iminente presente na decisão de prosseguir com a gestação, mas foi tendencioso ao apontar para o aborto legal como um perigo em potencial.

Em setembro do ano passado, a menina deu à luz ao bebê. Hoje, um ano depois, a vítima está grávida novamente. Ela não engravidou, porque não é sujeito ativo desta violência, ela foi engravidada. Sim, engravidada por – mais uma vez – um estupro. Desta vez o responsável por esta perversidade foi o tio da criança, mas o que mais chama a atenção é que a mãe permanece firme na decisão de proibir a realização do aborto.

A criança, acolhida institucionalmente em um abrigo por ação do Conselho Tutelar, está grávida de três meses. A proibição da mãe se alicerça na ideia de que “abortar é crime”, omitindo que a conjectura do estupro de vulnerável – como também é em casos em que a gravidez oferece risco à vida da gestante e anencefalia do feto, quando o cérebro do bebê é subdesenvolvido e seu crânio é incompleto – exclui a infração legal do aborto exatamente pelas circunstâncias.

A menina, na época em que questionada com quase dois meses gestacionais, também disse não querer abortar. O primo que a estuprou foi morto pouco tempo após a violência por razões que a família informa desconhecer.

Desde que a primeira criança nasceu, a menina está em situação de abandono escolar e se nega a receber atendimento psicológico. A criança, ainda segundo a Folha, tem uma relação bastante conflituosa com seus pais e está abrigada há cerca de um mês através do acolhimento institucional. Foram inclusive os funcionários do abrigo que suspeitaram da gravidez.

A conselheira tutelar que está acompanhando o caso, Renata Bezerra, disse à Folha que “A menina já vive um trauma da primeira gravidez, não tem condições de cuidar de mais uma criança. Ela está sem dormir, perdendo sua infância. Mas a mãe não autorizou o aborto.” O pai também se posicionou favoravelmente à realização do aborto, mas devido à divergência de opinião com a mãe, o procedimento não foi feito.

A mãe da vítima conta que sua filha estava morando com o pai na casa da avó e que o tio que cometeu o estupro dormia no mesmo quarto que ela. O primeiro bebê está sob os cuidados do avô, que está desempregado e vive com outras cinco pessoas, tendo pedido à rede de proteção cesta básica para manter o sustento básico.

Não proteger a infância desta menina é condenar o seu amanhã, fadando-a a cumprir com a sina de dois estupros. A opinião dela evidentemente foi influenciada e condicionada pela posição do médico. Se ele foi capaz de assustar a mãe, imagine o que uma fala com este teor premonitório é capaz de fazer com o imaginário de uma criança de onze anos.

Sim, porque a gravidez – ainda mais quando provocada por um estupro de vulnerável – não tem caráter emancipatório. Ou seja, no bom e velho português, não é porque a criança foi estuprada por dois adultos que ela deixa de ser uma criança. Ela permanece sendo uma menina, não é uma mulher.

Muitas pessoas se dizem pró vida e mesmo assim parecem não se importar com a vida de uma criança que está viva há onze anos e já assistiu e sofreu todo tipo de violência. Apostar na maturidade da menina para ser mãe nesta idade é outra violência. Uma criança não pode ser responsável por outra criança. O nome disto é revitimização, redundantemente ato ou efeito de tornar vítima novamente. Quantas terão que ser vítimas até este sofrimento acabar?

A reflexão que proponho é que falhamos mais uma vez com esta menina. Nossa rede de proteção foi atravessada por mais de uma violência e mais uma criança vai nascer, não deitada em berço esplêndido, como prevê o hino nacional do Brasil, mas ao relento das violações de direitos que se repetem geracional e hereditariamente.

O que estou dizendo é que a culpa é nossa também por prometermos uma infância tão digna e plena nas páginas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA | Lei 8.069/1990) e entregarmos esta barbaridade manifesta. É uma frustração extenuante e diária acompanhar as notícias e ter a consciência de que no exato momento em que você lê esta Coluna, outra criança está passando por isto. Mais uma. De novo.

Procuro em cada esquina pela tal mãe gentil que vai carregar tantas crianças no colo e escondê-las das maldades dos homens. Dedico-me a defender obviedades e falar sobre elas todos os dias. Porque cada infância é uma infância, mas toda criança é nossa criança.

 

Anna Luiza Calixto

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