A cultura do estupro é problema nosso

“Pintor é preso e confessa estupro de adolescente que foi ‘dada’ pela mãe, em Corumbá de Goiás.” “Justiça manda criança de 11 anos vítima de estupro e bebê para abrigo no RJ.” “Anestesista flagrado em estupro de mulher durante o parto vira réu.” “Vídeo mostra suspeito com jovem que denunciou estupro em fundo de hotel na BA; homem é procurado pela polícia.” “Procuradores pedem punição a colega que defende ‘obrigação sexual’ para mulheres; para presidente de associação da categoria, manifestação é ‘inaceitável’.” “Julgamento do jogador Jobson por estupro e pornografia com adolescente é marcado para outubro; crime foi há seis anos.” “Polícia investiga estupro de estudante no campus da UNB em Brasília.”

Sete manchetes de casos de estupro contra meninas e mulheres. Todas datadas de julho de 2022. Todas sediadas pelo Brasil. O exercício de parear notícias semelhantes em uma linha temporal e traçar um paralelo entre elas é revelador. A conclusão óbvia desta sequência de títulos sanguinolentos é que não é seguro ser mulher, especialmente no Brasil, país onde uma de nós é estuprada a cada dez minutos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública – 2021).

O comportamento do estuprador não é ocasional, mas condicionado pela cultura do estupro, termo oriundo de reflexões da chamada segunda onda feminista na Europa, cuja principal representante, Simone de Beauvoir, intelectual existencialista francesa, escreveu, na aclamada obra feminista O segundo sexo, que “não se nasce mulher, torna-se.”

A cultura do estupro não começa quando o avô invade o quarto da neta durante a noite e se sente autorizado a tocá-la em suas partes íntimas ou quando o completo desconhecido persegue a universitária que volta da aula e a arrasta para dentro do seu carro, onde comete o estupro. Ela tem seu prenúncio quando, ao entrar com seu filho em uma festa de aniversário infantil, uma mãe declara em alto e bom som para todas as figuras de cuidado de meninas presentes na celebração: “Prendam as suas cabritas porque o meu bode está solto!” – como se, desde a tenra idade, o menino devesse se orgulhar de representar uma ameaça para as outras.

Podemos abrir mais presídios, castrar quimicamente os estupradores, enrijecer as políticas de segurança pública e até mesmo autorizar a pena de morte, mas os estupradores continuarão nascendo e é mais do que comprovado que endurecer as penas não surte resultados práticos a longo prazo. A solução real é indubitavelmente perpassada pela educação sexual segura, preventiva, responsável e saudável.

A educação sexual pautada na autoproteção desde a primeira infância é a resposta para o título do presente capítulo. Precisamos responder assertivamente à cultura do estupro com práticas coletivas de prevenção e enfrentamento à toda forma de violência – física, moral, sexual, psicológica ou patrimonial – não ensinando as meninas a usarem roupas que cubram seus corpos e não marquem suas curvas da silhueta ou a não saírem às ruas depois de determinado horário, mas os meninos a não assediarem, abusarem, estuprarem ou praticarem qualquer forma de violação aos direitos femininos. Não deveríamos aprender a nos protegermos dos homens, deveríamos ensinar os homens a se comportarem pacificamente considerando que eles não são animais irracionais cujos instintos e ímpetos são incontroláveis.

Durante o tempo que você investiu na leitura deste texto, mais uma menina ou mulher foi estuprada. A cada estupro, nós falhamos como rede de proteção. Devemos bater à porta de cada uma delas antes que a violência faça isto. Quem não denuncia um caso de estupro torna-se cúmplice, escolhe o lado que protege o estuprador. Todo este silêncio é ensurdecedor e berra dentro de cada uma de nós. O sangue que corre em nossas veias é o de cada mulher indígena estuprada pelo bom colonizador que veio em cima de um cavalo branco prometendo um tal de progresso; é o de cada suposta feiticeira que usava sua sabedoria para a cura de enfermos e seu conhecimento assustava a ponto dela ser levada para a fogueira; é o da menina Araceli Crespo, violentada sexualmente da forma mais perversa que se pode vislumbrar; é o de nossas bisavós, cujos filhos também foram frutos de estupros maritais; é o de cada mulher que assina sua produção intelectual neste livro; é meu e é teu também. Tic-tac tic-tac tic-tac. A hora é agora. O problema é nosso.

Este texto é a versão compacta do artigo da escritora e palestrante Anna Luiza Calixto que inaugura a Coluna Quem tem boca vai à luta e que será publicado no livro Mulheres: sexo forte da Editora Conquista.

 

 

Anna Luiza Calixto

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