SOBRAS…

“E veio o dilúvio sobre a Terra…
E as águas cresceram e
inundaram tudo com violência,
e cobriram tudo na superfície da terra.”Gên.7.1718”

Ainda havia no céu os últimos clarões do dia.
Apesar das pesadas chuvas que castigaram toda região, transformando estradas em trilhas esburacadas, desabando as encostas, as quais levaram com elas os barracos com tudo que tinham dentro, inclusive seus moradores, o sol, que reaparecera radiante após a catástrofe, incentivava nos sobreviventes a disposição para o difícil recomeço.
Havia lodo, lixo e ratos rodeando as muitas pessoas que estavam à cata de seus poucos pertences, de seus entulhos, de seus mortos.
Uma galinha que, milagrosamente, escapara das águas não conseguira fugir da fome dos infelizes, repentinamente roubados de seus poucos sonhos.
Ele também estava ali. Vagando. Emudecido diante da dor que viera tão forte e com tanta água que lhe secara as lágrimas.
Abaixava-se de quando em quando, cutucando com uma vareta alguma saliência no barro e retirava dele um braço de boneca, um carrinho sem rodas, uma bola murcha, uma fivela dourada de prender cabelos, um pé de sandália havaiana, com as tiras soltas. Um a um, colocava os objetos dentro de uma sacola de plástico. Andou mais um pouco e recolheu um botão de fogão, uma camisa de time de futebol, rasgada e coberta de lama, a caixa do último CD do Roberto Carlos.
Acocorou-se e olhou para o céu. A noite caíra completamente. Uma lua cheia, brilhante e glamorosa, indiferente à tragédia, brilhava rodeada de estrelas.
Nem mais uma nuvem embaçava sua visão. As luzes da cidade, lá embaixo, competiam com as celestes.
Alguém lhe ofereceu um prato de canja. Recusou. Lembrou-se da galinha, primeiro empoleirada sobre a mureta que resistira à chuva, e depois estrebuchando nas mãos afoitas da vizinhança.
Abriu a sacola e continuou a inventariar o que lhe sobrara: a caixa do CD, sem a canção de amor; o botão do fogão que comprara com o dinheiro do Fundo de Garantia do último emprego; a camisa com a qual comemorou o título de seu clube do coração; o chinelo que lhe saíra dos pés, enquanto tentava escapar dos escombros, a fivela dourada que sua mulher não mais usaria e os brinquedos dos filhos, que nunca mais iriam brincar…

Henriette Effenberger

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