Sangue no leito nupcial

O que o casamento do prefeito de Araucária – PR com uma adolescente de 16 anos revela sobre o anacronismo das leis brasileiras. 

 

Passei dias sem me esquecer deste caso, mas refletindo o que se pode dizer diante de tamanho absurdo. Quando a barbárie é escancarada, somos pegos sem qualquer reação que não seja a total perplexidade. Abrimos os olhos e vemos sangue no leito nupcial de uma adolescente de 16 anos.

Hissam Dehaini, este é o nome do atual (espero que não por muito tempo) prefeito do município de Araucária, município do interior paranaense. Detido duas vezes em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) por provável envolvimento com o narcotráfico, Hissam tem 65 anos e já foi casado 6 vezes, tendo sido a primeira em 1980, quando a atual esposa – como me dói chamá-la assim – estava longe de nascer.

Para além do que diz a lei é preciso ter os olhos abertos para o absurdo da naturalidade dos olhares das pessoas presentes no casamento nas fotos da ocasião, como se fosse o grande dia de sorte da adolescente de 16 anos. O Jornal Oficial dos Cartórios de Registro do Brasil aponta que os dois apresentaram os documentos necessários e deram entrada na habilitação do casamento civil no dia 12 de abril deste ano, exatamente quatro dias depois do aniversário da vítima. Ou seja, ele estava feito um lobo à espreita da oportunidade para chancelar legalmente os abusos contra uma menina com quem já se “relacionava” (como chamar esta situação senão de violência?) antes disto. Colocou suas garras com alianças diante do que a Lei, sim, nossa Lei, permite.

É importante lembrar que, com tão pouca idade, o casamento no Brasil só é permitido mediante a autorização parental. Curiosamente, a mãe da adolescente foi nomeada como secretária municipal de cultura dois dias antes do casamento, evidenciando um acordo de cavalheiros entre os familiares, leiloando a vítima que hoje está mais exposta do que nunca.

A mãe da nova primeira-dama de Araucária já tinha antes da oficialização do matrimônio um cargo comissionado na Prefeitura do município, como diretora-geral na Secretaria de Educação. Até março, portanto, ela recebia R$ 13.917,38, sem incluir benefícios, segundo o Portal da Transparência. Com o casamento e a consequente nomeação ela passa a receber R$ 21.416.

Depois da polêmica a sogra do prefeito foi exonerada, mas não é possível que sejamos incapazes de perceber que a problemática é muito mais profunda que isto. Em declaração à Justiça Eleitoral, em 2020, Hissam disse ter mais de R$14 milhões em bens, incluindo um helicóptero, carros de luxo, quase R$3 milhões em espécie e três apartamentos avaliados em mais de R$1 milhão cada. A adolescente foi vendida.

Outra faceta perversa desta narrativa é que, através do casamento, a miss-teen da cidade passa a ser responsável por si mesma. Esta violação a emancipou, expôs sua vida de maneira abrupta e ridicularizou-a. Não é novidade que muitos veículos de comunicação estão revelando sua imagem sem borrar seu rosto ou ocultar seu nome no corpo textual das matérias. É a revitimização despudorada.

O casamento de Hissam Hussein (sem partido porque depois da polêmica deixou o Cidadania), foi celebrado pela vice-prefeita da cidade, Hilda Lukalski Seima. O problema é que ela está afastada das atividades cartorárias desde 2021, quando assumiu o mandato eletivo. Obviamente a vice-prefeita não tinha competência para celebrar o casamento, porque para exercer mandato, ela precisou se afastar das funções do cartório, por exigência da lei.

Ao mesmo passo que a possibilidade de anulação da união de ambos reacende uma certa esperança do possível fim deste pesadelo, fica o incômodo latente de que legalmente não há nenhum impedimento ao casamento de um idoso de 65 anos com uma adolescente que recém completou a idade núbil quando sua família concordou com isto. É como se estivéssemos de mãos atadas mediante a barbárie, acenando para o incêndio.

Há fotos do prefeito com a adolescente jantando em restaurantes DOIS ANOS ANTES do casamento, quando ela tinha 14 anos. Vale lembrar que até os catorze anos não existe sequer consentimento sexual válido segundo o artigo 217-a do Código Penal Brasileiro. Como é que esta sandice só é questionada depois do casamento oficializar o que antes já era terrível?

Paramos todos diante das manchetes e nos lembramos de nossas avós, bisavós e dos tantos casamentos arranjados conforme a conveniência das famílias, sem falar dos estupros maritais que geraram numerosos filhos sem que este fosse o desejo ou a intenção da mulher. É como uma volta ao pior passado. Um anacronismo doentio. O tic tac do tempo nos lembra que já é tarde demais para tantas meninas que escaparam das mãos da justiça que, vendada, não alcança o nosso desespero.

 

Anna Luiza Calixto

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