O rei está nu.

A sexualização infantil tomando as telas e revelando o que há de pior na Internet. 

 

Por onde começar quando o genitor de uma criança (para ser mais específica, de um bebê de colo) acha uma boa ideia dançar uma música extremamente sexualizada com o filho nos braços, incluindo-o na coreografia? Bem, começo exatamente por aí, sem chamá-lo de pai. Porque este nome tem o poder de adjetivar o homem que exerce uma relação de cuidado e zelo pelo bem-estar da criança em todos os aspectos. Um homem dotado de dinheiro, determinado poder e, ainda, completa condição de se informar sobre o mundo e o que acontece dentro dele, e mesmo assim pratica o impraticável, não pode ser chamado de pai. Chamamos de agressor (para dizer o mínimo).
Há tanto o que se dizer sobre o vídeo do chamado MC VT Kebradeira que está circulando nas redes sociais, mas ao mesmo tempo me parece que tudo o que posso dizer a respeito deste absurdo é tão óbvio que me cansa. Por isto, quero começar pelos comentários e pela repercussão do vídeo.
Primeiramente, é preciso estabelecer de uma vez por todas que este vídeo precisa ser deletado das plataformas com urgência, porque há a identidade de uma criança sendo exposta e talvez (não se pode prever) sendo instrumento do prazer de pessoas adultas ao consumir este conteúdo.
Publiquei muito recentemente fotos das crianças yanomamis em situação de extrema desnutrição e, para isto, tive a cautela de borrar os rostos e contextualizar o uso das imagens. Mesmo assim, o recurso de bloqueio de conteúdo sexual do Instagram foi implacável ao excluir o post e me advertir de que eu poderia ter a minha conta suspensa se este padrão se repetisse. O que será que impede o Instagram de excluir os posts com o vídeo ou ao menos incluir um aviso de conteúdo impróprio? Seria exagero pedir que a conta do MC fosse suspensa para apuração? Eu penso que não. Em um país onde a Lei considera crianças e adolescentes como prioridade absoluta, não me parece nada absurdo uma das principais plataformas de compartilhamento de conteúdo contribuir com a justiça e, assim, com a doutrina da proteção integral.
Enfim, vamos aos comentários. Um verdadeiro palco para a barbárie. Uma seguidora me procurou pela DM para me confessar sua perplexidade com o número exacerbado de pessoas comentando que “o povo quer ver maldade em tudo” e que “nossa, nada a ver, ele é pai dela!” Eu sinceramente questiono vocês se algum dia o vínculo de sangue impediu um abusador de pôr as mãos em uma criança. Uma pesquisa realizada no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e divulgada pela ChildHood Brasil aponta que a cada dez crianças vítimas de abuso sexual no Brasil QUATRO foram agredidas pelo próprio pai e TRÊS pelo padrasto. Entendem onde eu quero chegar?
Quero evidenciar, ainda, que a pesquisa mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre abuso sexual contra crianças e adolescentes traz no título uma provocação que cai aqui como uma luva. “Violência sexual infantil, os dados estão aqui, para quem quiser ver.” Com isto quero expressar que não, nem todo mundo quer ver. Nem todo mundo quer aceitar que um homem é capaz de sexualizar sua própria filha com tamanha perversidade. Falta tudo, inclusive senso de realidade. Mas este estado de negação cega pessoas que poderiam participar ativamente da luta.
Não é que eu estou vendo maldade, é que a maldade está aí, “para quem quiser ver.” Não é possível que eu seja a única a sentir repulsa assistindo a um homem cobrindo os olhos de um bebê no momento em que a letra da música que se ouve ao fundo sugere que uma mulher está sendo vendada sexualmente. E não adianta vir culpar a mãe da criança por não impedi-lo, porque ele não tem nenhuma característica de invalidez mental para precisar de uma figura de cuidado para frear suas sandices em praça pública.
O rei está nu. Muito mais do que isto, a naturalização de parte da sociedade à erotização precoce está nua e crua. Nada explica a perversidade e a irresponsabilidade dele, da pessoa que filma, de quem comenta aprovando e de quem compartilha. Dói assistir a sexualização de uma criança que não tem maturidade sequer para entender o que está acontecendo e muito menos para se defender ou pedir ajuda. Por este e tantos outros motivos, lutamos por ela e por todas as vítimas de abuso sexual ou de qualquer forma de erotização indevida. Não é apenas um vídeo a ser deletado de uma plataforma, é um padrão comportamental abusivo que deve ser banido da sociedade permanentemente.

 

 

 

Anna Luiza Calixto

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