O futuro chegou!

Não fosse o gato branco estirado no tapete, poderia se dizer que ela estava completamente só.
Que, praticamente, nem seus pensamentos ecoavam dentro de sua cabeça e que seus sonhos, se ainda os tinha, não a movimentavam em qualquer direção.
No entanto, ledo engano, tal como sua casa, ela estava povoada de lembranças: porta-retratos com fotos em preto e branco de adultos falecidos, e outras em cores esmaecidas de crianças que já se tornaram adultas.
Bibelôs, móveis que herdara da avó, toalhas que foram da mãe, utensílios de cozinha que passaram por diversas tias e chegaram a ela acostumados ao fogão, quase sabendo cozinhar sozinhos.
A colher de pau, cansada de mexer compotas e cremes, perdera a ponta arredondada e, tal como sua dona, já apresentava ranhuras e rachaduras.
O alumínio da panela de pressão não ostentava mais o brilho de outros tempos. Acostumara-se a ser lavado apenas com esponja e detergente e mal se lembrava da antiga palha de aço que o fazia reluzir como um espelho.
A velha talha de água, de argila, descascada e sem pintura, fora relegada a um canto da pia, substituída pelas garrafas de plástico que não guardavam a mesma frescura, mas em compensação, eram práticas, descartáveis e nem necessitavam da água da biquinha. Vinham da fonte ao consumidor e voltavam a ser plástico após a politicamente correta reciclagem.
É certo que ela se modernizara. Adaptando-se aos novos tempos, trocou a máquina de escrever pelo computador, o coador de pano por uma cafeteira elétrica, a antena de TV pelo cabo que trazia além da programação televisiva, a internet e o telefone. Frequentava redes sociais, passava e recebia e-mails, trocara a versão impressa do jornal pela digital e realizava suas transações bancárias pelo banco eletrônico.
No entanto, a modernidade da geração saúde não a atingira, pois não abandonara o vício de fumar, não frequentava academias de ginástica, nem consultórios de cirurgiões plásticos.
Mantinha empinado o nariz adunco, herança genética que a incomodara quando jovem e que ainda hoje passa a falsa impressão de arrogância e intelectualidade. Sobre ele os óculos que, se antes corrigiam o alto grau de astigmatismo e miopia, impedindo-a de enxergar ao longe, hoje a protegem também da incômoda presbiopia.
Nesse momento, ao pensar na presbiopia, entendeu que a natureza humana é mesmo compensatória: enquanto os músculos ciliares se enrijecem com a idade, os demais se tornam flácidos, tais como os seus seios, orgulho dos tempos de juventude e maturidade. Da mesma forma, a gordura que dava forma roliça aos dedos e preenchiam as mãos impecáveis, transferira-se para a cintura, a engrossando e arredondando o abdome.
Descobriu quão inútil é a sabedoria da terceira idade. A quem, aos setenta anos, interessa saber que dor de amor dói e passa, se não irá apaixonar-se novamente? Que é inútil abrir mão de prazeres para se poupar de dores futuras, pois elas virão de qualquer forma? ´
Olha para o gato branco estirado no tapete, enquanto preenche o formulário do departamento de trânsito para usufruir o direito de estacionar em vagas privativas aos idosos e constata sem mágoas ou arrependimento: o futuro chegou!

Henriette Effenberger – Bragança Paulista

Henriette Effenberger

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One thought on “O futuro chegou!

  1. Rosimara barbosa 10 de fevereiro de 2023 at 11:50

    Li e adorei, a vida é assim mesmo, a modernidade chegando a gente tentando se adaptir, mas a idade também chega. E aí apenas as recordações .

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