Por causa da mulher.

Uma nova perspectiva do corpo feminino e do direito à dignidade menstrual para além do 8 de março. 

 

Pode não parecer a princípio ter a ver com o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, mas eu me lembro como se houvesse sido hoje de quando menstruei pela primeira vez e, se alguém me dissesse que dez anos depois eu estaria escrevendo um post sobre isto em uma rede social ou literalmente publicando em um portal de jornalismo eu mandaria me internar. Mas se aprendi algo desde a minha menarca é que menstruar é natural. Não tem nada de sujo ou vergonhoso. O processo pode até ser doloroso para algumas mulheres, mas não é feio menstruar.

Vi o forro da minha roupa íntima manchado de sangue e pensei que estivesse machucada. Na verdade, considerei todas as possibilidades, menos que havia “descido pra mim”. Quando percebi a recorrência do sangue, contei para minha mãe e ela e a minha avó pareciam ter ganho um prêmio. “Filha, você virou mocinha!”, “Parabéns, meu amor, agora você é uma mulher!” – mas a realidade é que eu ainda não era uma mulher. Eu era uma menina adolescente menstruando pela primeira vez e tinha muito a aprender sobre ser uma mulher. Recebi meu pacote de absorventes e uma série de recomendações sobre menstruação.

Aos poucos fui entendendo que todas as dicas eram, na verdade, sobre esconder do mundo o fato de que eu menstruo. Sem que as mulheres menstruassem, ninguém no mundo nasceria e a espécie humana já teria sido dizimada – a não ser que nossa reprodução passasse a ser assexuada por osmose, por exemplo. Mas nas circunstâncias atuais, menstruação também é fonte de vida.

Como eu poderia saber qualquer coisa sobre menstruação se eu não conhecia a minha vulva? Pois é, eu e muitas de vocês aprendemos a chamar nossas vulvas de vagina. Mas a vagina é só uma entre as estruturas da vulva, como o monte de vênus, pequenos e grandes lábios, uretra, clitóris… Se nós, mulheres, fomos meninas sem conhecer nossos próprios corpos, imaginem vocês o que os meninos aprenderam com a pornografia. Pois é.

No documentário da Netflix “Absorvendo o tabu”, é apresentada uma comunidade na Índia em que as meninas fabricam seus próprios absorventes em uma fábrica comunitária para que possam frequentar a escola enquanto estão menstruadas, já que o acesso aos absorventes industriais é muito escasso. A diretora da série aborda alguns meninos que brincam de bola na rua e questiona se eles sabem o que é menstruação, ao passo que todos ficam com um ponto de interrogação estampado no rosto e um deles toma coragem e diz que é uma doença. Sim, os meninos pensavam que as meninas ficavam doentes, uma a uma, todos os meses do ano. Esta realidade pode até parecer distante de nós, mas experimente entrar em uma sala do 3° ano do ensino médio e pedir que um rapaz desenhe as fases do ciclo menstrual feminino. Ele certamente já decorou para uma prova o ciclo de reprodução de pteridófitas, como as samambaias, mas o ciclo de uma mulher não cabe no engessamento conservador da matriz curricular que o prepara para o vestibular do final do ano.

Ainda que eu fosse me descobrindo feminista com o tempo, minha relação com o meu próprio sangue nem sempre foi saudável. Minha mãe quando adolescente aprendeu a dizer “tô de chico” e eu logo aderi ao “tô naqueles dias.” Pior do que isto, aprendi que quando não estivesse afim de participar da aula de Educação Física eu poderia simplesmente dizer ao professor que estava com “problemas femininos.” A questão aqui é… Menstruar é um problema?

Pergunto isto porque durante a minha adolescência me tornei mestre na arte de disfarçar a visitinha mensal da minha menstruação. O primeiro artifício servia para esconder o absorvente descartável quando eu fosse ao banheiro trocá-lo. Acreditem vocês, eu colocava o braço dentro da minha mochila e, com ele ali escondido, eu puxava um absorvente para dentro da manga da blusa do uniforme escolar. Aí eu saía da sala bem discretamente torcendo pra ninguém perceber que – pasmem – eu sou um ser menstruante (palavra que eu mesma inventei).

Pra mim e pra tantas outras meninas, menstruar era um defeito de fabricação. Mas conforme me tornei uma mulher e, mais do que isto, uma mulher feminista, entendi que a sociedade patriarcal nos doutrina com uma verdadeira alienação mental para acreditar que o defeito é nascer mulher – menstruar é só uma das tantas consequências.

Experimentem comparar a diferença na relação das pessoas com uma mancha de sangue menstrual no sofá e uma mancha de vinho. Imaginaram a cena? Por que este desespero em aceitar que menstruamos e que, por isto, pode rolar uma manchinha ou outra? Por que eu cresci amarrando a jaqueta na cintura das minhas calças mais justas pra que ninguém pudesse ver o absorvente marcado no tecido? Por que quando eu tinha 13 anos e me chamaram pra entrar na piscina e respondi “hoje não dá, tô menstruada” todo mundo olhou pra mim como se eu tivesse confessado ser uma terrorista ameaçadora?

Eu cresci em um lar cristão que me ensinou muito, inclusive todos os meus valores, mas sabemos que as escrituras sagradas passaram pelas mãos de muitos homens até chegar em nossas casas. Provavelmente por este motivo tenham tantas considerações sobre a menstruação e o quanto ela torna a mulher impura. Eva descobre que vai menstruar ouvindo que “vai sangrar por sete dias e não vai morrer.” Portanto, é natural que haja certo estranhamento ao discurso feminista de empoderamento sobre a dignidade menstrual. Afinal, menstruar foi uma função biológica tratada secularmente como nojenta e hoje encontramos mulheres que ensinam outras até mesmo a sincronizar seus ciclos com as fases da Lua. É novidade mesmo.

Em termos práticos, a celebração do corpo feminino é historicamente uma novidade e tanto. Vivemos em um planeta em que o único órgão humano voltado única e exclusivamente para o prazer, o famoso clitóris, só foi estudado na totalidade de sua estrutura (não só a parte externa) em 1998. Uma cientista, Hellen O’Connell, do Royal Melbourne Hospital, descobriu que o órgão do prazer tem um comprimento total de 7 a 10 centímetros com duas pernas que se estendem para trás abraçando as laterais da vagina e que se dilatam quando estimuladas. O clitóris tem de 8 a 10 mil terminações nervosas. Se quiserem utilizar o pênis como comparação, ele inteiro tem aproximadamente 3 mil. Não se sinta culpada se você não sabia disto. Teoricamente, a queima das “bruxas” foi anteontem na história do nosso mundo.

Nos últimos anos eu tenho estudado a ginecologia natural através das obras publicadas pela parteira tradicional Pabla Pérez San Martín e me permitido conhecer e valorizar o meu corpo, ressignificando minha relação com os meus ciclos menstruais. Realmente estudei, pesquisei, permiti a mim mesma experimentar o coletor menstrual e compreendi melhor o universo forjado no corpo feminino, célula viva. Ciclos que não se resumem na ovulação, período pré-menstrual e menstruação. Sinais que não são apenas mal humor e inchaço ou alteração de libido. Processos que não serão os mesmos para mulheres cuja vastidão e pluralidade não cabem dos limites da ciência padrão e ocidental.

Neste processo de pesquisa me deparei com uma capa de livro curiosamente extraordinária e decidi comprá-lo. O título é “A origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. O patriarcado” – o que já seria suficiente para despertar minha vontade de ler – e a capa está na foto para todo mundo ver. A autora, Liv Strömquist, é sueca mas parece conhecer mulheres do mundo inteiro. Melhor ainda, ela parece ter sentado com todas nós pra conversar e ter sistematizado tudo o que ouviu das nossas aflições e lembranças em histórias em quadrinhos. Sim, o livro é uma HQ!

Com ele percebi que não admiro tanto assim Santo Agostinho e passei a gostar mais da Lou Andrea-Salomé – que conheci através de um professor machista que a chamou de “a mulher que fez Nietzsche chorar” – e entendi com mais profundidade a mutilação genital-clitoriana e toda a perversidade dos homens que não admitem o prazer feminino, muito menos se ele estiver desassociado do pênis. E assim crescemos sem qualquer orientação sobre masturbação feminina ou noção de prazer individual.

O que eu aprendi (finalmente) é que o mundo também nasce de uma vulva (pelo menos o mundo humano). Não há vida sem este sangue que tanto rechaçamos. Este vermelho que mancha nossas calcinhas é o mesmo que põe um bebê no mundo. Querem saber? Ainda bem que menstruamos. Ainda bem que as próximas gerações de meninas vão nascer cientes da potência que carregam, sem precisar se envergonhar de serem mulheres; poderão dizer que não vão brincar de esconde-esconde porque estão com cólica menstrual e quem sabe tenham professoras que ensinem nas aulas para os meninos também sobre o ciclo que atravessamos mês após mês. Assim, quando questionarmos um menino que brinca de bola na rua sobre o que é menstruação ele poderá dizer: “é o que as mulheres chamam de potência.”

Anna Luiza Calixto

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