“A linguagem da espiritualidade, quando desprovida de consciência crítica, torna-se veículo de opressão e não de libertação.” — Silvia Federici
1. Introdução: quando a luz também cega
Nas últimas décadas, observamos a ascensão de discursos que resgatam, a princípio com aparente boa intenção, a ideia de uma “energia feminina”. Este conceito, muitas vezes apresentado como símbolo de conexão com o sagrado, a natureza e o corpo, foi recuperado por diversas vertentes espiritualistas, especialmente no contexto das chamadas terapias holísticas e do neopaganismo contemporâneo. No entanto, o que se vê, cada vez mais, é a apropriação desse discurso por forças profundamente conservadoras, patriarcais e, em muitos casos, vinculadas à extrema direita.
Essa retórica — travestida de empoderamento — recai sobre as mulheres como mais uma forma de controle, reinstituindo papéis de gênero essencialistas sob o pretexto de “reconexão com a essência”. Como nos alerta Judith Butler: “quando o gênero é naturalizado, o poder se dissimula em biologia.” Este artigo propõe, portanto, uma análise crítica da instrumentalização do conceito de energia feminina e do chamado sagrado feminino por discursos misóginos contemporâneos que, sob a capa da espiritualidade, reproduzem e renovam o patriarcado.
2. Energia feminina como construção simbólica e armadilha retórica
A ideia de uma energia feminina não é, por si só, problemática. Culturas ancestrais, especialmente matrifocais, como as ameríndias, africanas e orientais, constroem o feminino como força vital, coletiva e relacional. O problema emerge quando esse conceito é traduzido na modernidade capitalista e colonial sob a ótica binária e domesticadora do Ocidente.
Segundo Rita Segato, “o patriarcado moderno é uma pedagogia da crueldade que opera também pela estetização da dominação”. Ao ressignificar o feminino como algo intrinsecamente passivo, sensível e submisso — valores que seriam “da sua natureza energética” —, esses discursos mascaram o essencialismo com palavras doces.
Federici, em Calibã e a Bruxa, desvela como a caça às bruxas foi o ponto de inflexão em que o corpo feminino deixou de ser território de autonomia para se tornar um corpo colonizado: “a redefinição da feminilidade como domesticidade e recato não foi um simples produto cultural, mas um instrumento político.”
3. O sagrado feminino e o imaginário da ancestralidade falsa
O chamado “sagrado feminino” é, hoje, um dos rótulos mais populares dentro dos circuitos espiritualistas contemporâneos. Apresentado como uma via de cura interior, reconexão com o corpo, com os ciclos menstruais e com arquétipos como as deusas gregas ou egípcias, ele supostamente resgata um conhecimento ancestral perdido — mas raramente apresenta fontes reais sobre quais tradições ou epistemologias embasa.
Trata-se, como denuncia Silvia Cusicanqui, de uma colonialidade da espiritualidade, onde saberes fragmentados são retirados de contextos indígenas, africanos ou orientais e ressignificados por terapeutas brancas urbanas, muitas vezes sem qualquer vinculação com as comunidades de origem.
O uso do “cacau ancestral”, por exemplo, é emblemático: vendido em cerimônias com valores altos, ele é apresentado como rito espiritual feminino. No entanto, o cacau não foi historicamente usado em cerimônias femininas de cura do útero por culturas originárias mesoamericanas — essa é uma reconstrução moderna, muitas vezes ficcional. Estamos diante de uma fetichização do “ancestral”, que serve ao mercado e à estética, mas não à emancipação.
4. A culpabilização da mulher e a estética do empoderamento falso
A mulher, no discurso do sagrado feminino, torna-se um projeto inacabado: ela precisa se purificar, se reconectar, se limpar, se libertar dos homens que ela mesma atraiu com sua energia desregulada. A responsabilidade pelo abuso, pelo abandono e até pela desigualdade estrutural recai sobre sua suposta desconexão com a essência uterina. É o mesmo mecanismo que a lógica neoliberal emprega para individualizar problemas sociais: a cura vira performance e o fracasso é culpa pessoal.
Eva Illouz, em Por que o amor dói?, nos lembra que o sofrimento psíquico feminino na modernidade está profundamente imbricado com as expectativas amorosas e de gênero. O sagrado feminino, ao essencializar a mulher como cíclica, receptiva, amorosa, volta a colocar seu valor na entrega e na contenção. A mulher se empodera… para continuar a servir.
5. Quando o patriarcado veste túnicas de linho cru
A estética do sagrado feminino — coroas de flores, vestidos esvoaçantes, palavras como “cura”, “florescimento”, “deusa” — cria uma imagem de emancipação que, na verdade, reforça normas de feminilidade dócil, branca, magra e heterossexual. Pouco se fala em mulheres negras, lésbicas, mães solo, periféricas, trans. O sagrado, nesse caso, é excludente e higienizado.
bell hooks nos alerta: “A espiritualidade é a base da libertação, mas só se for interseccional.” Do contrário, estamos apenas reproduzindo o privilégio sob nova embalagem.
6. O flerte entre o espiritualismo conservador e a extrema direita
A extrema direita tem se aproveitado do vácuo das grandes instituições para ocupar o imaginário simbólico das populações com discursos que misturam mística e conservadorismo. O retorno à “verdadeira mulher” como base da família, o resgate da “feminilidade natural” como resposta à crise dos valores modernos, são ferramentas políticas eficazes para a desmobilização de pautas feministas.
Jason Ānanda Josephson analisa como regimes autoritários frequentemente se apropriam de linguagens espirituais para legitimar poder. O feminino, nesses regimes, é símbolo de ordem, moral e estabilidade. Tudo que escapa a isso — o feminismo, a sexualidade dissidente, o aborto, o laicismo — é tratado como caos.
7. Entre a espiritualidade crítica e a política do corpo
É preciso recuperar a espiritualidade do feminino como uma prática de reconexão com o mundo, sim, mas ancorada no pensamento crítico, na ética e no coletivo. Como diz Audre Lorde: “Meu erotismo é político porque é verdadeiro.” A energia feminina não precisa ser domesticada, nem vendida em círculos lunares de R$ 300. Ela pode ser a força que costura redes de afeto e luta, que sustenta greves, que cozinha para o coletivo, que escreve poemas, que sangra e não silencia.
8. Conclusão: o feminino não é essência, é insurgência
Não há essência, há existência em constante construção. A mulher não é “naturalmente” nada: ela é efeito de história, cultura, política e desejo. A espiritualidade que nos serve é aquela que não nos envergonha do nosso grito, nem exige que sejamos brandas para sermos boas.
Como escreve Françoise Vergès: “O feminismo decolonial não separa o corpo do mundo, nem a luta da transcendência.” E talvez seja justamente esse o verdadeiro sagrado feminino: não o que se vende, mas o que se luta.


