Nos últimos anos, a ascensão do gênero true crime transformou a maneira como consumimos narrativas sobre violência. O que começou como um nicho literário e audiovisual interessado na análise criminal e investigativa tornou-se um fenômeno global de entretenimento. Entretanto, no Brasil, essa tendência foi absorvida pela imprensa de forma indiscriminada, resultando na espetacularização de crimes brutais. Longe de oferecer uma análise crítica ou informativa, a mídia tem explorado tragédias reais de maneira grotesca, especialmente quando as vítimas são mulheres.
O caso recente de Vitória Regina de Sousa, jovem de 17 anos assassinada no interior de São Paulo, ilustra essa dinâmica perversa. Desde seu desaparecimento até a confirmação de sua morte, a cobertura jornalística foi marcada pelo sensacionalismo: manchetes alarmistas, transmissão ao vivo de investigações, exposição desnecessária da família e exploração emocional dos espectadores. A dor de uma vítima e de seus entes queridos se transforma em espetáculo midiático, enquanto a violência de gênero subjacente a esses crimes é tratada como pano de fundo.
A Violência Contra a Mulher Como Entretenimento
A jornalista e escritora Patrícia Melo, em seu romance Mulheres Empilhadas, aborda a banalização do feminicídio no Brasil, expondo como esses crimes são frequentemente ignorados ou tratados de forma superficial. Na obra, a protagonista — a advogada de direitos humanos que investiga assassinatos de mulheres — se depara com um sistema que normaliza a violência e protege os agressores. A ficção de Melo encontra eco na realidade: o Brasil tem uma das maiores taxas de feminicídio do mundo, mas a imprensa frequentemente trata esses crimes como eventos isolados, reforçando estereótipos de que são motivados por “ciúme”, “brigas conjugais” ou “distúrbios psicológicos” do agressor.
Esse padrão de cobertura não é acidental, mas sintomático de um problema estrutural. A socióloga Heleieth Saffioti, em Gênero, Patriarcado e Violência, argumenta que a naturalização da violência contra a mulher é uma engrenagem fundamental do sistema patriarcal. A espetacularização midiática de crimes femininos não apenas desumaniza as vítimas, mas também reforça a ideia de que essas violências são inevitáveis. A transmissão incessante de detalhes gráficos, entrevistas invasivas e a exposição da vida pessoal da vítima fazem parte de uma engrenagem que transforma sua dor em um produto de consumo.
O True Crime e a Cumplicidade da Mídia
A romantização do true crime e a maneira como a mídia nacional tenta surfar nessa onda revelam a conivência estrutural com a violência de gênero. Como destaca Rita Laura Segato em Las Estructuras Elementales de la Violencia, a violência contra a mulher não é um fenômeno individual, mas sim uma manifestação coletiva do patriarcado. Quando a mídia cobre esses crimes de maneira sensacionalista, perpetua um ciclo de violência simbólica: mulheres continuam sendo retratadas como vítimas indefesas, seus corpos expostos como objetos de morbidez pública, enquanto pouco se fala sobre as dinâmicas sociais que permitem que esses crimes aconteçam.
O consumo desenfreado de histórias de crimes reais, impulsionado pelo sucesso de documentários e podcasts, legitima essa abordagem. A audiência brasileira, sedenta por narrativas chocantes, contribui para a transformação da violência em entretenimento. O problema não está na existência do true crime enquanto gênero, mas sim na forma como ele é apropriado sem reflexão crítica, especialmente quando atrelado a uma imprensa que há muito tempo ignora a ética jornalística.
Quando a Mídia Protege o Agressor
A espetacularização de crimes não apenas explora a dor das vítimas, mas também contribui para a construção de narrativas que protegem os agressores. Em muitos casos, a imprensa insiste em destacar qualidades dos assassinos — se eram “bons pais”, “trabalhadores”, “educados” — e na busca por justificativas para seus atos, desviando o foco da responsabilidade. O caso de Eliza Samudio, brutalmente assassinada pelo goleiro Bruno, é emblemático: por meses, a cobertura se concentrou em seu suposto comportamento “problemático”, insinuando que de alguma forma ela teria provocado sua própria morte.
Carla Akotirene, em O Que é Interseccionalidade?, reforça a necessidade de analisar essas dinâmicas com um olhar crítico, especialmente quando as vítimas são mulheres negras, periféricas ou LGBTQIA+. A interseccionalidade revela que a violência de gênero não atinge todas as mulheres da mesma forma. Mulheres negras, como Claudia Silva Ferreira, morta pela polícia no Rio de Janeiro e reduzida a “mulher arrastada” pela mídia, são desumanizadas em um nível ainda mais profundo, sua existência reduzida à brutalidade de suas mortes.
O Papel do Jornalismo na Desconstrução da Violência
O jornalismo tem o dever de informar, mas também de contribuir para a reflexão social e para a construção de uma sociedade mais justa. A espetacularização de crimes de mulheres não apenas desrespeita a memória das vítimas, mas também reforça a cultura da impunidade e da violência. Quando a imprensa transforma tragédias em espetáculo, negligencia o papel investigativo que deveria desempenhar: questionar por que esses crimes acontecem, denunciar falhas institucionais e dar voz às mulheres que continuam lutando por justiça.
A abordagem midiática de crimes violentos no Brasil precisa de uma revisão urgente. O compromisso com uma perspectiva de direitos humanos, a valorização da dignidade das vítimas e a recusa do sensacionalismo são passos fundamentais para que a imprensa exerça seu verdadeiro papel na sociedade. Enquanto o sofrimento de mulheres continuar sendo tratado como entretenimento, o jornalismo estará cumprindo uma função que mais se assemelha à do carrasco do que à do informante.