Diga-me o que lês e eu te direi quem és

Diante de um mundo tão plural, o que nos faz pensar que uma única escolha pode definir o todo?
Imagine então seu gosto literário determinar sua competência ou ausência dela.
Como já citado por Joaquim Maria Machado de Assis, ou somente Machado de Assis, “Vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa.”
A diversidade é o que torna nossa existência mais rica, mais produtiva, porque nesta junção das particularidades, há o poder de escolha, mesmo que com deliberadas limitações.
“Perfeição somente no mundo ideal de Platão”; aprendi logo cedo, na infância. E é justamente na infância, que as primeiras colunas começam a ser erguidas e a percepção, mesmo munida do desconhecido, se alarga numa curiosidade motora.
Somos movidos pelo novo, pelo desconhecido, pelo diferente que acrescenta, mesmo quando de alguma forma não nos cabe; que nos aprofunda, mesmo quando não temos por opção o mergulho; que nos dá possibilidades, mesmo sem ainda termos encontrado um norte.
Na infância, sobretudo, escolhemos nossos livros pelas cores, pela forma, pelo tamanho, pelo brinde, mas de alguma maneira, escolhemos por algo que nos toca, e que pode nos alcançar o coração. E não somos julgados quando estamos frente a uma prateleira e seu aglomerado de livros infantis.
Ao longo do tempo, a literatura que continua com seu poder de transformação, ganha novos andares, mais degraus, mais portas e janelas, assim como tudo em nossa existência possibilita. Mas, já crescidos e acrescidos de mais informações, damos de encontro com os julgamentos que se alargam conforme o tamanho dos passos. O juízo de valor ganha potência.
Avaliamos mais, somos também muito mais avaliados, mas em alturas diferentes.
Seja baseado em critérios pessoais, emocionais, ou de valores, a depender da subjetividade do ser que julga, um único laçar de pernas, pode imputar em como foi o processo todo de uma longa caminhada, de uma jornada inteira, mesmo que não haja dados concretos e nem mesmo conhecimento prévio da vida do outro.
O juízo de valor impera até mesmo diante da ausência de um juízo de fato.
Mesmo que em determinadas situações por vezes, o juízo de valor tenha sua importância para tomadas de decisão e formações de opinião, é essencial que seja exercido com absoluta responsabilidade.

Mas, e quando todo mundo fala e pouco ou nada ouve? É aí, que a sociedade começa a escalonar no universo do caos.
O acesso à informação verdadeira já pouco importa. O que passa importar é a “minha verdade”, que independentemente dos fatos, é a única verdade que importa.
Quando uma verdade torna-se absoluta, o contexto por si só pode apontar para o nascimento de uma mentira, e esta, quando contada mais de uma vez e com plateia fixa, torna-se uma complacente “verdade”.
Falar torna-se um reflexo natural e condicionado àquele que quer dominar, mesmo que pouco ou nada entenda.
Quem entende e compreende passa a ser quem ouve; e para muitos, quem ouve “enrola”. E quem “desenrola” mesmo, é quem detém a praticidade, desenvolve falando, julgando, falando, julgando…
Em consonância com a sociedade do caos, temos a sociedade do cansaço.
Estamos cansados de afirmar e reafirmar, que o único julgamento literário aceitável é a avaliação crítica com base em seus elementos estruturais, estilísticos e temáticos, que reunidos formam o gênero literário, uma categoria específica, mas que todos podem ler, todos podem ter como predileto ou não, mas jamais fazer juízo de valor.

Diga-me o que lês e eu te direi quem és”, retoma o exemplo do início do texto, o julgamento pelo simples laçar de pernas.
O julgamento baseado na vazia ideia de que a inteligência, a perspicácia, a sabedoria ou a ausência destas características, se encontram na particularidade de uma escolha pessoal; neste caso, no gosto literário.
O preconceito também na literatura não é de hoje, mas ainda hoje, em tempos mais evoluídos, vemos demasiado regresso ou a permanente insistência em alavancar a injustiça social baseada em estereotipados conceitos.
A desvalorização, a inferiorização e a marginalização aos mais variados grupos sociais, saltam no simples ato da livre escolha; e infelizmente isso corrobora na ausência ou na diminuição da representatividade, criando um véu de invisibilidade por meio do medo do julgamento.
E é neste contexto, que a régua sobre o que é qualidade literária ou não, acaba por perpetuar os mais variados preconceitos em nossa sociedade.
Desmantelar a concepção de que apenas os clássicos representam a boa literatura, ou que literatura de qualidade não pode ser também sinônimo de entretenimento se faz necessário. Embora a literatura atue como um espelho social, toda profunda comunhão que nós como leitores temos com nossa particular escolha de leitura, traz voz, dá-nos verdadeira voz atuante e não o espaço vazio de quem muito fala e nada diz.
A diversidade literária é uma ferramenta poderosa e a leitura precisa propiciar uma aventura intelectual que transcenda o teor em si do que se lê, e que desenvolva por meio de uma abordagem diversificada a curto ou a longo prazo um pensamento mais crítico, mas consciente. Um pensamento verdadeiramente plural.

Por Amanda da Silveira Lopes

Imagem – Amanda da Silveira Lopes

Instagram @faroldaspalavras

Amanda da Silveira Lopes

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