Pode parecer anacrônico falar em relações pessoais-presenciais num mundo forjado no digital – mas como podemos evoluir e compreender melhor a nós mesmos e desenvolver novas potencialidades relacionais se estamos perdendo a essência do que nos faz humanos? Nossas compras são digitais; nosso trabalho é home office, consultamos médicos e terapeutas à distância, estudamos on line…
Temo que daqui alguns anos, a nossa capacidade de socialização poderá estar completamente atrofiada (quem sabe venderemos cursos de reeducação social para geração Z para reverter e humanizar quem nasceu no mundo digital)…
Exagero? Hoje, por exemplo, está cada vez mais difícil escolas técnicas e faculdades atrair alunos para cursos presenciais – todos querem a facilidade do on line… mas só quem viveu uma faculdade presencial, sabe o que significa uma vivência acadêmica, a discussão apaixonada com colegas e professores, as insanas pesquisas em bibliotecas de verdade, as amizades forjadas na quadra, nos bares e na cumplicidade das provas bimestrais.
De fato, a tecnologia nos levará a prescindirmos do contato presencial em muitas situações, e iremos assistir tutoriais e simuladores cada vez mais detalhados e sofisticados para nos ensinar de tudo, de bordado ponto cruz a cirurgias cardíacas. Sinceramente espero não ter que me consultar com este tipo de médico do futuro…
O contato e relação com o mundo se dá, na vida das pessoas, inicialmente com a família, amigos e vizinhos que frequentam nossa casa, na escola, na igreja, nas ruas do bairro, praticando esporte, e em algum momento, no mercado de trabalho. Pré-adolescentes tem a oportunidade de experimentar relacionamentos fora de seu círculo familiar (uma suposta “zona de conforto”) e empreender sua jornada fora dos antes intocáveis dogmas e crenças familiares, e assim aos poucos encontrar sua identidade e seu espaço na sociedade. Esta experiência de sair do casulo marca o fim da infância, da inocência, e inicia o ciclo do arquétipo do “órfão”… precisamos “matar” simbolicamente nossos pais, como parte da preparação de nossa própria jornada; isso pode levar anos, talvez uma vida inteira.
Fechados na vida digital, perdemos interações reais, onde ganhamos a malícia de conhecer e interagir com outros seres humanos, nos espelhando nos defeitos e qualidades alheias, para ajudar nossa própria evolução – aprendemos a praticar a empatia e a assertividade, e com o tempo, perceber os fantasmas e vampiros que nos rodeiam, e como nos livrar deles.
No mundo digital do isolamento e introspecção, sem relações reais, prevalecerá o egocentrismo, cada um criando sua própria moral e compreensão do mundo, uma babel de ascetas néscios, cada vez mais distanciados de nossa Divina condição de observadores e criadores inventivos, onde buscamos nossa completude em coisas espontâneas, não maculadas ou plastificadas. As reuniões de família, a conversa gostosamente jogada fora pelos botecos do planeta, uma roda de samba ou forró na areia da praia, a briga no campinho de futebol, ou o namoro escondidinho ao pé do muro.
É certo que nossa sociedade tem uma maior emancipação em relação a gerações anteriores, com maior percepção de liberdade individual, livre para correr atrás de seus desejos. Mas isso não necessariamente é sinônimo de satisfação. Pode ser um saudosismo meu, mas dói compreender que o humanismo como filosofia pode ter morrido junto com a sistematização do contato e relacionamento humanos, que nos fazem compreender melhor valores como afeto, amizade e amor; ao invés disso, vivemos uma sociedade implacavelmente competitiva, com falsos valores, e quando o calo aperta, procuramos um psiquiatra para nos redimir com uma pílula mágica!
Para o educador e filósofo Rubem Alves, nascemos fracos e indefesos, incapazes de sobreviver isoladamente – somente o relacionamento humano nos permite criar identidade e desenvolver nossa potência; se não nos permitimos aprender desde cedo no convívio “da rua”, as relações humanas serão cada vez mais difíceis e passaremos a ver nossos interlocutores como “ameaças” em potencial ao nosso mundo, possivelmente perdendo da vida o seu melhor…
Reflexão animal:
O Ouriço se reproduz uma vez por ano, enquanto que o Porquinho-da- Índia chega a quatro gestações – por que será??