Criadores do Possível XV – “Quando nos desnudamos”, por Gianmarco Bisaglia

Quem tem medo de cara feia nunca poderá comer porco no rolete – neste ritual carnívoro, a gente pega o porco, olha no olho dele e esfaqueia sua garganta em direção ao coração – pendura o bicho de cabeça para baixo e colhe o sangue para o chouriço, enquanto o bicho guincha pela vida. Depois de estripado e temperado, espetamos o bicho num espeto que vai assar por umas 12 horas, e podemos saborear a iguaria enquanto sua cabeça defumada olha com muita raiva para a gente! Quem tem medo de cara feia não come porco no rolete!

 

Quando nos desnudamos, nos apresentamos sem vaidade, anulamos nosso ego e nossos desejos, nos permitimos a reflexão e catarse profunda de quem somos, o que sentimos e humildemente nos colocamos num palco, frágeis, expostos e inteiros! Raramente o fazemos pelo outro – não se trata de uma ação em busca de uma reação. O desnudar-se é um ato individual e faz parte da jornada pessoal de cada um – o instante de olharmos a vida e a morte, e compreendermos a fragilidade da existência humana. Praticamente todas as religiões, seitas e sociedades secretas trabalham o simbolismo da iniciação: o adolescente que vira adulto, o aprendiz que vira mestre, o profano que se torna iniciado.

Sendo uma jornada pessoal, ela é solitária: nos colocamos ao escrutínio da moral alheia e não podemos esperar nenhum reconhecimento, alento ou palavra de consolo, quem se desnuda nada deve esperar em troca – vivemos a nossa própria experiência de morte em vida para que a Fênix interior tenha espaço para um voo mais elevado. Logo fazemos para nós, nunca para os outros – é uma jornada silenciosa e dura, onde ninguém enxugará nossas lágrimas, e com sorte podemos contar com a empatia e respeito daqueles que compõem o nosso círculo e compreenderão nosso ritual dentro da jornada que nos cabe.

É a jornada do(a) Mártir: “eu me sacrifico!”, mas não se trata de um sacrifício que rogará piedade ou nos transformará em vítimas perante a sociedade, nem deverá ser celebrado com exposição midiática, nosso mais funesto disfarce; trata-se de um sacrifício pessoal onde entendemos vivenciar a dor da exposição, da ausência e distanciamento, simbolicamente purgando nossas feridas internas, de onde saímos “prontos” para uma nova fase de aprendizado e crescimento pessoal. A jornada simbólica às vezes se constitui uma jornada física, quando subimos as escadarias do Redentor de joelhos ou caminhamos 900 km na Rota de Santiago, ou coisas mais simples, quando agradecemos com sinceridade, reconhecemos erros ou expomos nossa tristeza ou gratidão – é quando nossas lágrimas lavam nossa alma e nos vemos vivos, alertas e mais próximos da existência divina.

Nossas verdades internas são descobertas às vezes a duras penas – não estão abertas ao escrutínio dos invejosos, o perfil de gente que sobrevive pisando na cabeça dos outros, que destilam o mal fingindo fazer o bem, criando sua moral miserável, coletando “pecados” alheios ao invés de trabalhar sua própria evolução espiritual. Shakespeare os chama os “algozes da existência”, um bando de imbecis que fazem com que a gente perca muito tempo em nossas jornadas pessoais – a estes desejo sinceramente um longo processo reencarnatório, para quem sabe um dia se perceberem dentro do casulo para despertar…

O ser humano é o único animal da natureza que escraviza o seu semelhante, e em nome desse falso poder criaram-se ideologias, religiões e toda uma cultura de crenças para dominar a mente, o coração, e quem sabe a alma de quem está ao seu lado. Quando encontramos uma cara feia no caminho, a nos repreender por estarmos num papel “egoísta” de auto descoberta, eu me lembro da história do porco. Se eu tivesse medo de você eu não te devoraria!

Exatamente para não cair nas tentações de ser a vítima ou o algoz nessa triste e rica experiência terrena, empreendemos sozinhos nossas jornadas de autoconhecimento sejam físicas ou simbólicas, procurando entender quem somos – os livros de Paulo Coelho, o Alquimista e Diário de um Mago descrevem bem estas jornadas onde encontramos na caminhada amigos e inimigos, anjos e demônios; a caminhada já é o voo da libélula. Mas vamos estar alertas que o casulo ainda pode impregnar nossa existência – quando nos livramos da casca externa, também precisamos descartar as armaduras que nos impedem uma relação mais plena com o mundo: nossos medos e nossas crenças limitadoras, os fantasmas fictícios que assombram nosso inconsciente.

A jornada pessoal é a saída do casulo, com asas para voar, onde nos expomos a novos perigos e novos predadores, mas também renascemos com novas habilidades. Há quem não consiga sair do casulo – a estes, a minha compaixão, pois viverão na escura falsa segurança do ventre sem conhecer a luz da revelação interna, essa força criadora que tende a explodir dentro de nós, para entendermos no seu pulsar divino, o significado deste plano terreno.

Quanto nos despimos ganhamos oportunidade de sentir na pele o quente e o frio, e conhecer quem colocará em nossos ombros o manto da acolhida ou nos estenderá a mão para ajudar na caminhada.

O sol abençoa e ilumina esses corpos dissidentes…

 

Canção bônus – “Começar de Novo! – Ivan Lins

Começar de novo e contar comigo.Vai valer a pena ter amanhecido.Ter-me rebelado. Ter-me debatido.Ter-me machucado. Ter sobrevivido.Ter virado a mesa. Ter-me conhecido.Ter virado o barco. Ter-me socorrido.

Gianmarco Bisaglia

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