Clarice Lispector é agora: o corpo, o silêncio e a linguagem no centro do mundo

Resumo

A obra de Clarice Lispector permanece viva e relevante diante de debates atuais sobre gênero, identidade, subjetividade, corpo e linguagem. Este artigo propõe uma leitura de sua produção literária a partir de marcos teóricos do feminismo, da fenomenologia e da psicanálise, mostrando como sua escrita — marcada por experimentalismo e introspecção — antecipa e dialoga com os discursos contemporâneos. Através de um enfoque crítico e interseccional, propõe-se que Clarice rompe com categorias rígidas e formula uma poética do indizível que ainda hoje ilumina questões urgentes.


1. Introdução

Clarice Lispector ocupa um lugar único na literatura brasileira e mundial. Sua escrita, frequentemente associada ao existencialismo e ao fluxo de consciência, não se prende a tramas lineares, mas mergulha nas experiências íntimas e na construção do ser. Para Benedito Nunes (1989), a literatura clariceana não narra fatos, mas tenta apreender a experiência do ser no tempo e no espaço, por meio de uma linguagem que é ao mesmo tempo revelação e ocultamento.

É precisamente essa ambivalência — entre dizer e não dizer, entre o íntimo e o universal — que faz de Clarice uma autora contemporânea, ainda que pertencente ao século XX. Seus textos abordam, com intensidade poética, temas como a alienação feminina, o esvaziamento do sujeito moderno, a violência simbólica da linguagem e a instabilidade do corpo. Elementos esses que atravessam as pautas mais relevantes do nosso tempo.


2. Clarice e os feminismos contemporâneos

A obra de Clarice Lispector é uma interlocutora potente dos debates feministas, ainda que não se alinhe explicitamente com militâncias. Como propõe Yudith Rosenbaum (2002), Clarice constrói um “feminino outro” — não aquele definido por normas sociais, mas por tensões, desejos e rupturas. As personagens femininas lispectorianas vivem conflitos entre maternidade, domesticidade, sexualidade e transcendência, tornando-se figuras limítrofes que desafiam as fronteiras do que é ser mulher.

No conto “Amor”, da coletânea Laços de Família, Ana, mulher casada e mãe, vive uma experiência de ruptura ao se deparar com um cego mascando chicletes. O gesto banal se torna catalisador de uma crise existencial que revela o vazio de sua vida doméstica. Tal como observa Regina Dalcastagnè (2007), Clarice inaugura, nesse e em outros contos, uma forma de realismo introspectivo que desnuda o cotidiano e a alienação da mulher burguesa. Isso antecipa a crítica feminista à “felicidade compulsória” da mulher no lar, discutida décadas depois por autoras como Sara Ahmed.

Ainda em A Paixão Segundo G.H., a protagonista, ao esmagar uma barata, entra em contato com um estado liminar de existência que rompe com a linguagem e com os papéis sociais. Como aponta Heloísa Buarque de Hollanda (2004), essa experiência radical de despersonalização pode ser lida como uma crítica ao sujeito cartesiano masculino — linear, racional — em favor de uma subjetividade do corpo e do abismo. Clarice, portanto, desestabiliza o feminino normativo e se aproxima de um pensamento feminista de matriz desconstrutiva, tal como o proposto por Judith Butler.


3. O corpo como campo de experiência e ruptura

O corpo, em Clarice, não é apenas veículo de ação ou suporte físico — é, sobretudo, um campo simbólico de disputas e revelações. Segundo Luciana Stegagno Picchio (1995), o corpo clariceano é um “lugar de escrita e silêncio”, onde a linguagem tropeça, e o ser se mostra na carne, no sangue, nos sentidos. Em textos como “O Corpo” e Um Sopro de Vida, o corpo é o que falta e o que excede — é o que insiste mesmo quando a linguagem falha.

A crítica Ana Paula Arnaut (2008) defende que, em Clarice, o corpo é atravessado por uma escritura do estranhamento: ele escapa à significação direta e obriga o sujeito à confrontação com sua opacidade. Em tempos contemporâneos, marcados por discussões sobre o corpo como território político — em debates sobre gordofobia, sexualidade, identidade de gênero —, a literatura clariceana se atualiza como forma de resistência ao corpo-normalizado.

Em A Hora da Estrela, Macabéa encarna o corpo precário, invisível, descartável — aquele que não se vê nos espelhos da cidade. Sua figura é central para pensar o cruzamento entre literatura e política do corpo: mulher, nordestina, pobre, doente, subempregada. O corpo de Macabéa é o não-corpo da sociedade. Como escreve Eliane Robert Moraes (2012), Clarice elabora “um corpo sem lugar”, que questiona os discursos hegemônicos de pertencimento.


4. O silêncio como gesto radical de escrita

Um dos elementos mais enigmáticos da obra de Clarice é o silêncio. O não-dito, o que não pode ser nomeado, constitui parte central de sua escrita. Para Benedito Nunes (1989), o silêncio em Clarice não é ausência, mas presença densa, matéria estética e metafísica. Há, em seus textos, um esforço constante de escrever o que está além da palavra — o que, talvez, só possa ser vivido.

A escritora e crítica Leyla Perrone-Moisés (1990) afirma que a prosa clariceana realiza uma experiência de “escrita do inefável”, onde a linguagem se volta contra si mesma para tentar alcançar o que está além: o instante de ser, o lampejo do real. O silêncio é, nesse contexto, uma forma de dizer sem capturar, de expressar sem reduzir.

Esse gesto é político. Em tempos de hipercomunicação, em que a palavra é mercadoria e opinião, o silêncio clariceano se torna resistência. Ele se contrapõe à linguagem vazia do cotidiano, à tagarelice da mídia e das redes sociais. Como observa Rancière (2009), há potência política em toda interrupção do discurso dominante. Clarice oferece não só lacunas — oferece a chance de escuta, de suspensão, de escavação subjetiva.


5. A linguagem como falha e criação

Clarice rompe com a linearidade do discurso, abrindo espaço para uma linguagem em estado de erupção. Sua escrita se aproxima daquilo que Barthes chamou de “escrever em nível zero” — uma linguagem em que o estilo é transparente e, ao mesmo tempo, profundamente estilizado. Como nos mostra Flora Süssekind (1987), Clarice escreve contra a norma, colocando em crise a própria noção de representação.

Na estrutura narrativa de Água Viva ou Um Sopro de Vida, não há enredo nem personagens no sentido tradicional. Há voz. Voz que hesita, que rui, que se reinventa. Essa estratégia se alinha ao que Julia Kristeva (1980) define como uma escrita feminina que não obedece à gramática da dominação. É uma escrita que desliza, que pulsa, que é corpo e desvio.

Mais do que representar a realidade, Clarice cria realidade por meio da linguagem. A palavra é carne, é sopro, é vibração. Assim, ela se alinha aos debates mais atuais sobre a performatividade da linguagem e seu poder de constituir mundos, como propõe Butler (1997) em Excitable Speech. Clarice não descreve — ela convoca.


6. Conclusão

Clarice Lispector permanece radicalmente atual porque sua escrita se funda na recusa de todo fechamento. Ela escreve o instante, o abismo, o corpo, a palavra e seu fracasso. Numa época marcada por urgências identitárias, ruídos discursivos e reivindicações do corpo como território de resistência, sua literatura se impõe como um gesto de escuta, de estranhamento e de reinvenção.

Sua obra não nos dá respostas, mas nos devolve perguntas. E é talvez por isso que continue tão viva: porque nos obriga a pensar — com o corpo, com o silêncio, com a linguagem. Clarice ainda está entre nós, não como relíquia, mas como farol.

Tamy Simões

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