“Não queirais, pois, andar demasiadamente
inquietos pelo dia de amanhã. Porque
o dia de amanhã cuidará de si, a cada dia basta o seu cuidado.”
Mateus, 6.34
De repente, as nuvens formaram a figura de uma grande mão. Não aquela que aponta os erros com o indicador, nem aquela que repele, nem mesmo aquela que, distraidamente, joga uma moeda no chapéu do mendigo. Uma grande mão, daquelas que afagam, que acolhem… Uma mão solitária no firmamento, afagando a terra. Naquele momento, ele gostaria de estar com seus óculos de sol para enfrentar a claridade e não precisar desviar os olhos do céu, não se esconder da mão que o afagava. Gostaria de poder parar o vento para que a figura não se desmanchasse, para que pudesse continuar se sentindo acarinhado.
Corre-corre… gritos de mulheres e de crianças… janelas e portas se fechando, se misturando ao barulho característico e familiar de balas de fuzis fez com que ele tirasse os olhos do alto e olhasse para baixo a tempo de ver os policiais subindo o morro. Mais rápido que eles, abandonou o posto e se embrenhou fundo no mato. Ouvia ainda os tiros, distantes, mas a adrenalina fazia com que ouvisse mais forte o bater de seu próprio coração de animal acuado, perseguido, caçado.
Suando, resfolegando, arrastou-se por entre os arbustos e raízes e deixou-se ficar deitado numa vala úmida junto com insetos e folhagens apodrecidas. Sentia as formigas subindo-lhe pelas pernas, mas continuava imóvel. A respiração presa fez com que não fosse percebido por seus caçadores, que passaram por ele, seguiram em frente, como cães rastreadores que, milagrosamente, perdessem o faro.
Aos poucos foi se acalmando. Os batimentos cardíacos voltando ao normal. Já não sentia o cheiro de seus perseguidores. De quando em quando olhava para o céu e percebia as grandes pás dos helicópteros espalhando o que lhe restara da visão que poucos momentos atrás lhe trouxera uma paz quase esquecida, uma paz da qual não se sentia merecedor.
O grande pássaro de aço se afastava. Voltou a olhar para as nuvens, procurando reencontrar a mão que o afagara, mas já estavam dispersas. Escureciam, formando-se para uma grande tempestade, encobriam o sol, reforçando no homem o sentimento de abandono que conhecia de longa data.
Um bando de pássaros, ruidosamente, buscava o abrigo de seus ninhos. Por não ter nada a fazer, além de se manter escondido, acompanhou o voo com o olhar. E de um canto obscuro de sua mente voltaram as palavras que um dia ouvira em algum lugar: “ olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisão nos celeiros, e contudo vosso Pai celeste as sustenta”.
Henriette Effenberger – 1995
Antologia de crônicas premiadas da USF.


