Escutem as crianças.

 

Preferi não publicar aqui no meu perfil o vídeo que está circulando intensamente pelas redes sociais, que mostra uma criança com uniforme escolar berrando desesperadamente e pedindo socorro assim que descobre, em frente à mãe, ao pai e à psicóloga judicial que seria levada, com a roupa do corpo, pelo pai para passar a morar com ele fora de Minas Gerais, onde residia até então, indo para o estado de São Paulo. As imagens são muito fortes e, mesmo cobrindo o rosto da menina, optei por não anexar aqui pelo teor sensível e pela inevitável exposição à vítima. Sim, vítima. A menina já havia relatado durante o procedimento de escuta especializada que sofria abusos sexuais pelo pai, com palavras muito duras de se ouvir saindo da boca de uma criança tão pequena.

Durante o vídeo assistimos a vítima em completo estado de choque e o mais desesperador é perceber que a transição da guarda para o genitor, que conquistou este recurso judicialmente através da lei de alienação parental, desconsidera absolutamente o que a Organização das Nações Unidas (ONU) chamou de interesse superior da criança em 1989 na Declaração Universal dos Direitos da Criança, ou seja, que a voz da criança deve ser ouvida e respeitada em todos os momentos decisivos para o seu bem estar e desenvolvimento pleno. A própria Constituição Federal Cidadã de 1988 destacou a importância da proteção integral – que deve ser responsabilidade do tripé fundamental da rede de proteção, família, sociedade e estado – e antecipa um princípio muito importante para a construção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, a prioridade absoluta. Nada pode ser mais importante do que o completo respeito à voz de uma criança, em especial quando esta voz pede socorro porque não quer viver com o pai, a quem ela mesma diz que odeia porque ele “faz pinto”.

A menina tem sua vontade completamente desconsiderada no correr do processo. Descobrir mais tarde que ela também se preparava para uma apresentação artística de balé na escola para aquele final de semana foi ainda mais doloroso para mim.

A voz da psicóloga judicial ao dizer para a mãe da criança se afastar é capaz de ser ainda mais ensurdecedora do que os próprios berros desesperados da menina. Este é um típico caso em que a vítima cai novamente sobre o colo do violentador, mesmo tendo sido atendida por parte da rede de proteção, e é revitimizada ou, neste caso, melhor dizendo, retraumatizada. Tudo neste episódio me lembra o Código de Menores, legislação anterior ao ECA, principalmente a objetificação da criança, que é rebaixada da condição de sujeito de direitos e é coisificada por um modelo de justiça lacunar e deficitária que desrespeita a criança como ser em período de desenvolvimento peculiar.

Posso me lembrar precisamente da primeira vez em que ouvi sobre a alienação parental. O ano era 2014 e eu fui até a sede da OAB do município de Bragança Paulista para assistir a exposição do já falecido Desembargador Antônio Carlos Malheiros, meu avô de militância, sobre o tema. Alienação parental é o que acontece quando um dos genitores da criança pratica interferência psicológica e passa a introjetar no imaginário do filho imagens deturpadas sobre o outro genitor, não raro mentindo e concebendo uma percepção bastante pejorativa sobre o outro responsável, não raro buscando se beneficiar do depoimento especial da criança para conquistar judicialmente sua guarda, prejudicando assim o desenvolvimento infantil e a relação da criança com a família, direito assegurado por um dos incisos do artigo 16 do ECA, na forma de “convivência familiar e comunitária”.

Oito anos depois, há pouco mais de um mês, participei do Manifesto pela Dignidade da Infância e em Repúdio a Omissão da Autoridade Pública, sediado pela PUC – Perdizes, com a presença de nomes de extrema relevância para os direitos da criança e do adolescente no Brasil, como a deputada federal e ex-ministra de direitos humanos Maria do Rosário e o advogado e ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) Ariel de Castro Alves. Confesso que fiquei bastante surpresa quando uma das ativistas presentes levantou a questão da urgência da reformulação absoluta da lei sobre a alienação parental. Por não entender as problemáticas envolvidas nesta discussão, decidi pesquisar para me informar melhor a respeito.

Foi então que eu descobri que, no início de fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) já havia recomendado ao Congresso Nacional a revogação da lei de 2010 e do Projeto de Lei (PL) nº 7.352/2017, ambos referentes à alienação parental. O parecer dos membros do Conselho revela sua preocupação porque a lei, em sua execução prática, tem prejudicado mulheres e crianças e beneficiado diretamente homens e, pior, agressores e abusadores. O Conselho ainda aponta que a lei foi elaborada a partir da ideia de “síndrome de alienação parental”, conceito sem qualquer validação científica, não reconhecido como síndrome pela American Medical Association, pela American Psychological Association e não pautado no Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM) da American Psychiatric Association como um transtorno psiquiátrico.

Em resumo, esta lei tem reforçado estereótipos e estigmas machistas alicerçados no patriarcado sobre as mulheres e, mais especificamente, as mães. Delineando a mulher como uma mãe vingativa e ressentida do processo de separação, a lei transforma o réu – acusado de abuso sexual ou violência doméstica – em vítima denunciante, como se o que estivesse em risco não fosse o bem-estar e a proteção da criança, mas sim a reputação do genitor, cuja honra não pode ser ferida. Muitos homens, através desta lei, têm requerido judicialmente o direito à guarda da criança, invertendo a situação, como uma maneira de se vingar da ex-companheira pela denúncia realizada.

Sim, você me entendeu bem. Esta lei transforma a mãe – responsável pelo cuidado e proteção da criança – em julgada. O PL precisa ser rejeitado, porque propõe que os juízes determinem a necessidade de tratamento psicológico ou biopsicossocial para quem praticar atos de alienação parental. Pensem bem: como pode ser possível determinar tratamento da área da saúde para uma questão que não tem caráter de doença ou transtorno?

Ainda mais impressionante é buscar informações sobre este caso absurdo nos principais canais de notícias e veículos de comunicação e não encontrar praticamente nada. Quando os relatores e legisladores incluíram a sociedade na rede de proteção aos direitos de crianças e adolescentes, eles distribuíram esta responsabilidade de zelar e proteger meninos e meninas de todo o Brasil para cada um de nós. Até onde pude me informar, a criança realmente está, neste momento, morando com o violador, à mercê de quaisquer violências, vulnerabilidades e violações de direitos, de maneira ainda mais acentuada depois que este homem – que não consigo nem posso nomear como pai – assistiu tão de perto a criança pedindo ajuda para ficar distante dele. O sadismo se excita diante do desespero da vítima.

Perplexidade é pouco. A revitimização é pronunciada com todas as suas letras quando vemos uma psicóloga judicial – portanto, membro do sistema de garantia de direitos, que deve exercer a proteção, a defesa e o controle social dos direitos daquela menininha e de tantas outras – assistindo tão de perto o desespero da vítima que ela própria ouviu e nada fazer a respeito. Se eu deixo de proteger, torno-me cúmplice da violência, parte do absurdo. As minhas palavras quase perdem o fôlego diante de tamanha dor e da sensação de impotência que compartilho com a mãe desta criança. Só me resta citar Dante Alighieri quando ele escreve que “o pior dos assentos mais quentes do inferno está reservado para aqueles que, nos momentos de crise, optaram pela indiferença.”

 

 

Anna Luiza Calixto

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