Erotização precoce: assalto à infância.

Crítica à campanha da marca Balenciaga que expõe crianças com bolsas adultas com ursos vestindo artifícios eróticos. 

Punir a infância é condenar o futuro. A parte mais extenuante de lutar pelo direito à dignidade sexual de crianças e adolescentes – além de ser a defesa mais literal do óbvio – é sentir que somos beija-flores tentando apagar o incêndio da floresta com a água que podemos carregar no bico. Enquanto zelamos tão cuidadosamente para que meninos e meninas possam se desenvolver livres de violência, de acordo com suas peculiaridades e potencialidades, a Balenciaga, marca de moda de alta costura famosa por vestir e calçar celebridades ao redor de todo o mundo (inclusive no Brasil) lança uma campanha envolvendo elevado capital publicitário expondo crianças carregando o produto da marca. O problema é que o tal produto é uma bolsa com um urso de pelúcia que traja adereços relacionados à BDSM (universo de práticas sexuais que envolvem bondage, disciplina, dominação e submissão, sadismo e masoquismo) e os olhos dos bichinhos estão com a aparência machucada, como se eles tivessem sido violentados.

 

“Nossa, mas é só uma campanha. Provavelmente eles não tiveram esta intenção.” – qual pode ser a intenção de um adulto ao colocar uma criança para publicizar um produto que alude enfaticamente ao sadomasoquismo? No desfile da marca na Semana de Moda de Paris, em outubro deste ano, modelos arrastavam a bolsa pela lama, em um cenário de destruição artificial típico da Balenciaga, que comumente cria polêmicas desafiando os limites do belo e voltando os holofotes para suas criações.

 

O que mais me deixa perplexa neste caso, além obviamente da referência absurda à violência sexual contra crianças, é que uma campanha publicitária de uma marca deste porte passa pelas mãos (e pelos olhos) de muitos profissionais. Da fotografia à direção de arte; dos funcionários de iluminação à quem teve esta ideia estapafúrdia, até à quem ficou responsável por publicar as fotos… Não é possível que ninguém tenha olhado para as crianças com o semblante sério carregando ursos pornográficos e não tenha sentido o mesmo que nós, esta repugnância acompanhada de choque total e absoluta consciência do contrasenso moral que a campanha representa.

 

Sabemos que é bem possível que este tipo de abordagem marketeira seja uma técnica polêmica de manter a marca em evidência, mas neste caso os fins estão longe de justificar os meios. Nada justifica a exposição do rosto, do corpo e da identidade de uma criança vítima da sexualização extrema – muito menos quando há adultos que lucram tanto nos bastidores da erotização precoce.

 

A polêmica piorou quando influenciadores identificaram documentos de processos da Suprema Corte dos EUA com alusão à comercialização de cenas de violência sexual contra crianças (no texto chamada de pornografia infantil) na composição de uma das imagens veiculadas no site de vendas da marca, acompanhando uma bolsa e não crianças – o que não atenua o quão simbólico é esta estratégia. O documento posicionado na publicidade era nada mais nada menos que a página 11 de Ashcroft v. Free Speech Coalition de 2002, uma defesa que versa sobre a venda e divulgação de nudez infantil e violência sexual simulada contra este público como uma “liberdade de expressão protegida”, isenta de punição. Ainda acham que foi acidental? Elas já foram retiradas do ar, mas, mesmo não incluindo crianças, as imagens estavam dispostas ao lado da campanha dos ursos no site. Seria coincidência demais que esta fosse uma mera sucessão de acidentes.

 

Um pedido de desculpas não é o suficiente, a marca precisa ser responsabilizada pela justiça. A sexualização precoce representa um assalto desumanizante que viola inúmeros direitos fundamentais. É preciso mobilizar as redes contra qualquer alusão comercial à violência sexual contra crianças, mesmo que a campanha não seja brasileira, e esta responsabilidade é não apenas dos ativistas, mas principalmente daqueles que costumam consumir itens produzidos pela marca. Ela tem aporte internacional, não à toa vende seus produtos mais polêmicos para influenciadores brasileiros. É uma violação ao senso ético e humano naturalizar este tipo de alegoria sexual da infância.

 

No Brasil o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) publicou em 2014 a resolução 163, uma das principais diretrizes para discutir a publicidade infantil no Brasil. As crianças já são, mesmo fora da publicidade, muito sexualizadas pelos adultos. No nosso país um dos termos mais buscados em sites pornográficos é “novinha” – termo que também protagoniza um sem-número de músicas de conotação sexual no Brasil. A depilação absoluta do corpo feminino é uma das exigências dos padrões estéticos – também acentuados pela indústria da moda – e, sob um ponto de vista crítico, é uma referência à infantilidade. Um corpo adulto tem pelos, o de uma criança não. A partir disto são evidenciadas a profundidade e a importância desta discussão.

 

Pondo os olhos nos rostos das crianças – que borrei para evitar mais uma exposição arbitrária, mesmo que isto não minimize os impactos nefastos e perversos já provocados pela campanha – vejo traços suaves e inconscientes do que têm em mãos. É perturbadora a crueldade de quem fez parte desta campanha, utilizando crianças para vender artigos de caráter pornográfico. Que desserviço à infância, é tanta insensibilidade que me atordoa e me faltam palavras para expressar a revolta que isto promove na rede de proteção. Crianças têm direito à dignidade sexual e nada nem ninguém pode se dar ao direito de violá-los por prazer, lucro, compensação ou puro sadismo. Assim como a humanidade tem responsabilidade por denunciar quaisquer empresas ou marcas que promovam direta ou indiretamente trabalho escravo ou exploração de mão de obra infantil em sua cadeia produtiva, não podemos enriquecer quem menospreza a infância e sexualiza sua existência. Não passarão.

Anna Luiza Calixto

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