Deus o tenha!

Homenagem à memória de Dr. Inocêncio Salarolli
no terceiro ano de seu falecimento.

Uma das coisas que eu mais detestava, quando menina, era frequentar as aulas de violão no Conservatório Musical. Apesar de gostar muito do Maestro Gorga, meu professor, tinha horror de apertar as cordas de aço que me feriam os dedos, e mais brava ainda eu ficava, quando reclamava e as pessoas me diziam: precisam criar calos!
Confesso que sentia também um pouco de vergonha de andar pela rua carregando aquele violão, dentro de uma horrível capa verde-escura, e ter que responder às velhas vizinhas que sempre estavam nas janelas: o que você já aprendeu a tocar? Eu não sabia tocar nada. Só o “quem-quer-pão/ quem-quer-pão”. E isso eu não iria dizer a elas, jamais!
No entanto, havia uma coisa, nessas duas vezes por semana em que eu ia “à cidade” sozinha, que realmente gostava: sair da aula de violão e comer pastel de queijo, acompanhado de caldo de cana, na pastelaria do chinês, que ficava ao lado do conservatório.
Aliás, minha mãe morreu sem saber que ao invés de usar o dinheiro para a compra da passagem de volta no ônibus circular, eu o usava para comprar o pastel.
Quem me acompanhava nessa aventura era Inocêncio, um menino da minha idade, que estudava acordeom nos mesmos dias e horários.
Saíamos da aula, comíamos nossos pastéis que vinham em pratinhos de alumínio, com papeizinhos cor-de-rosa, substituindo guardanapos, tomávamos nosso caldo de cana em canudinhos de taquara e seguíamos em direção às nossas casas. A dele ficava na metade do caminho, no que chamávamos de Larguinho das Pedras, e eu seguia mais alguns quarteirões até a minha.
Uma tarde, não sei por que, Inocêncio resolveu que levaria para casa o canudinho de plástico com uma colherinha na ponta, que servia para que se colocasse o molho de pimenta nos pastéis. E o colocou dentro do Bona, método musical que, ao mesmo tempo, era o nosso instrumento de tortura.
Andamos alguns metros e antes mesmo de atravessarmos a praça, se sentindo culpado, Inocêncio voltou correndo à pastelaria para devolver a colherinha. E ficamos nós dois tentando, com borracha e cuspe, tirar a mancha de pimenta do livro.
Adultos, a vida nos levou a caminhos diferentes. Eu mudei de cidade, ele se tornou um oftalmologista respeitável.
Hoje, pelas redes sociais, soube que faleceu, vitimado não pela Covid, mas por um câncer.
Há décadas não o via, mas tenho certeza que foi um homem bom.
Deus o tenha!

Henriette Effenberger

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