Criadores do Possível VII – Os Círculos de Dor, por Gianmarco Bisaglia

Todos no mundo encontram seu par, porque só eu vivo trocando?

Se deixo de alguém por causa de carinho, por brigas e outras coisas mais

Quem aparece no meu caminho, tem os defeitos iguais (“Foi Assim”, Lupicínio Rodrigues)

 

Chamo de círculos de dor qualquer contexto em que estamos inseridos, que geram comportamentos recorrentes, nem sempre conscientes, e nos colocam num estado de constante insatisfação ou stress.

De forma geral podemos encontrar estas situações nas relações pessoais – relacionamentos abusivos, opressão familiar – no trabalho: ambiente tóxico, modelos verticalizados, competitividade, e nos grupos sociais – escola, igreja/religião, etc.

O medo da solidão, e a necessidade de reconhecimento pelo outro, nos levam a ceder espaço, repetir narrativas, aceitar atitudes, e reproduzir comportamentos que ao longo do tempo geram insatisfação, ansiedade, raiva, depressão, envenenando nosso corpo e alma.

As “paixões tristes” no dizer de Espinosa, criam co-dependências que coisificam os protagonistas numa relação circular onde são repetidos os papéis – a “donzela em perigo”, o “salvador”, o “carrasco”, o “falso profeta”, o “escravo submisso”, a criança rebelde” e assim vai, impedindo que as pessoas expressem seus reais sentimentos e desejos, condicionadas aos papéis que lhes foram atribuídos (ou que simplesmente construíram para si, ainda que isto impeça de experimentarem limites e exerceram seu pleno potencial.

A familiaridade cria a sensação de uma zona de conforto, de supostos ambientes seguros (família, emprego, igreja) que banaliza as agressões e abusos, aceitos como coisa normal, gerando no longo prazo depressão, transtornos e outras patologias do corpo físico.

No processo de acolhimento de mulheres em situação de violência observamos ser comum uma mulher levar muitos anos antes de tomar a decisão de deixar um relacionamento abusivo. Muitas pagam com a vida essa demora…

É cada vez mais comum casos de burnout e stress nos ambientes corporativos, quando se desumanizam as relações pessoais ao exigir que metas inatingíveis substituam nossos propósitos de vida, e a nossa iniciativa e criatividade sejam aniquiladas a ponto de estarmos felizes por ser o 0,01 de uma equação que não fecha. Nossa estima fica inestimável!

E estes círculos viciosos e viciantes podem ser enganosos, gerando a falsa sensação de plenitude – pode não haver abuso ou medo, a comunicação ser lateral e a liberdade de fato existir, mas ainda assim podem apresentar um propósito que diverge do que arde em nosso coração.

“Tenho um ótimo marido (que eu até amo de vez em quando)”

“É uma ótima empresa para trabalhar (desde que você entre no clima)”

“Posso contar sempre com meus pais (eles sabem me dizer o que fazer da minha vida)”

“Sinto no louvor Deus dentro de mim (mas a fé vai passando ao longo da semana)”

As instituições em si não são as vilãs aqui – pessoas constroem relações, desenvolvem e propagam seus conjuntos de crenças e valores dentro de colégios, clubes, grupos de amigos, famílias, casamentos, times de futebol; o que está em causa é como nós lidamos com o alinhamento das nossas as expectativas pessoais junto aos coletivos onde convivemos, assertivamente dialogando sobre nossa paixões e projetos, contribuindo para construção de ambientes transparentes, virtuosos e cooperativos.

Aos primeiros sinais de insatisfação ou dor, é desejável um novo olhar sobre contextos, ambientes e fluidez das relações – o quanto construímos relacionamento de interajuda ou co-dependência? Nossa individualidade e escolhas são respeitadas? Podemos ser espontâneos sem ofender algum dogma? Há dogmas escritos em pedra?

Romper com os círculos de dor é possível, demanda lucidez e requer coragem – cabe também o alerta: se não conhecermos a nós mesmos, e aprendermos a respeitar nossa individualidade, nossos limites, nossos medos, e sobretudo, entender nossos desejos, podemos facilmente cair num novo ciclo de dor, com novas regras e algozes, e a sensação que há uma “matrix” impossível de ser vencida.

Ninguém muda de fora para dentro e sim de dentro para fora! Quando a terra está pronta para o plantio, abrimos os sulcos e semeamos. Quando nada nasce, é hora de procurar outras terras. A sabedoria do nômade é perfeita – ficar é morrer de fome, e a jornada, ainda que tenha seus perigos, augura uma nova terra e ares, renovando a vida e a esperança dentro de nós. Só nós temos o direito e o dever de mudar nossa história! Creia nisso!!!

 

Microconto bônus:

ÉBRIO

Viu passageiros rostos do último coletivo… não fez sinal, dormiu no ponto!

Gianmarco Bisaglia

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One thought on “Criadores do Possível VII – Os Círculos de Dor, por Gianmarco Bisaglia

  1. Angela 10 de agosto de 2024 at 09:58

    Que delícia de texto. Amei 🌹

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