CRIADORES DO POSSÍVEL IV – QUEM SÃO NOSSOS ÍDOLOS? por Gianmarco Bisaglia

Pai, você foi meu herói, meu bandido (Fábio Jr.)

Na minha juventude (anos 70-80) eu ouvia muito de pessoas mais velhas que o mundo não produzia mais ídolos – levei meu tempo para entender que todos buscamos pessoas de referência, que inspiram nossas vidas e ações – podem ser cidadãos, artistas, profissionais,  que atraem nossa admiração e respeito, mas às vezes podem resultar em devoção ou idolatria!

Ajo com muita cautela perante o endeusamento de celebridades, pois vejo que as pessoas compram muito facilmente as embalagens sem experimentar o produto. Há quem se mate para tirar uma selfie com uma atriz ou jogador de futebol e perca amizades longevas por cretinas discussões políticas… mas o que de fato a maioria das celebridades faz ou contribui para tornar melhor o mundo onde habitam?

A mídia digital facilitou muito a criação de heróis sem sentido e sem caráter (Macunaíma eterno!) – qualquer um vira influencer ou celebridade… personagens salvadores que farão de você artista ou milionário, curarão todas as doenças com uma receita da avó, tudo pago em seu credit card. Na real, são pessoas de carne e osso, que precisam ser vistas sem a máscara glamorosa das narrativas midiáticas ou do marketing pessoal. Ou você já comprou o boneco do Luva de Pedreiro?

Mas por que precisamos de referências? Para ampliar o nosso universo de conhecimento e compreensão do mundo e das coisas – lemos livros, assistimos filmes, apreciamos pinturas, acompanhamos entrevistas e discursos, artigos, podcasts, procuramos conhecer e conviver com pessoas que tenham algo de sábio e verdadeiro, que nos inspirem pelo exemplo e pelo conteúdo, de preferência as duas coisas.

Aqui reside a grande questão – a figura do herói cristalizada em nosso imaginário vem dos contos de fábulas, lendas, religiões, da literatura e do cinema – veja o arquétipo do herói do western americano – homem branco, forte, habilidoso, líder, inconsequente e invencível, a imagem do bem que combate o mal, como se fosse tão simples!

Curiosamente a partir dos anos 90 a maioria dos filmes e sérias passam a apresentar personagens mais próximas do público, humanizadas, com virtudes e defeitos como qualquer mortal. Basta ver as diferenças entre Capitão Kirk da série Star Trek original e da Capitã Jane, da série Voyager – a heroína sensível, que erra, pede desculpas, uma mulher normal lidando com a pressão da posição de liderança, que precisa “acertar” e ainda lidar com os próprios medos e limites, bem diferente do Kirk autossuficiente. A arte evolui para representar algo mais próximo do real.

Em nossos primeiros anos de vida tomamos como ídolos nossos pais, avós, tios, irmãos e primos, e ao aprimorar nosso entendimentos e convicções vamos compreendendo o real lugar de cada personagem em nossas vidas – são seres humanos de verdade, que sofrem, que tem dúvidas, que tomam decisões erradas e às vezes nos decepcionam com mentiras e outros traços de caráter duvidoso – aos poucos, o “super” vai deixando de ser usado e passamos da fantasia infantil à realidade do cotidiano.

Trabalhar com pessoas é parte da minha história – gente é minha matéria-prima. Passei a entender as pessoas a partir da consistência de seus discursos e de suas realizações –  evito julgar aparências ou comentar fatos e falas fora de contexto; um desafio considerável se queremos enxergar empaticamente alguém.

Gosto de descobrir e reconhecer em pessoas comuns a coerência de discurso, ainda que polêmicos, a autenticidade de convicções, a competência em suas especialidades e generosidade no trato com outras pessoas – descubro aí heroínas e heróis do dia a dia, cidadãos, profissionais e seres humanos com quem vale a pena conviver. Pode ser a moça do caixa, a dentista, o frentista, os parças de churrasco e futebol, músicos e artistas com quem interagimos, nossos atendidos na ONG ou empresários e políticos influentes na região… enfim gente que nos ajuda a compreender melhor os segmentos onde atuamos, dão conselhos, ajudam resolver problemas ou simplesmente nos acolhem em silêncio em  momentos desespero ou necessidade.

Estas personagens e seus atos heroicos identificados no cotidiano compõe o grande jogo de encaixes que alimentam o que e quem somos – e quanto mais colecionamos novas peças, mais espaços surgem, a mostrar como é fascinante e infindável o desafio de conhecer e compreender o ser humano…

E posso dizer que adoro e admiro Chet Baker, Tom Jobim, Ray Charles, Charlie Parker, Billy Holiday, Janis Joplin, Elis Regina, Raul Seixas, Hemingway, Bernard Tapie, Nana Caymmi, Neruda, Nicolelis, Ariano Suassuna, Rubem Alves, Egberto Gismonti, Cesária Évora, Noel Rosa, Edith Piaf, Wilde, Humberto Eco, Ademir da Guia, Fred Mercury, Piazzola, Júlio Verne, Ivone Lara, Kurosawa, Albert Camus, Paulo Freire, Raul Cortez, Michael Jordan, Mercedes Sosa, Geraldo Azevedo, Rodin, Peter Drucker, Paco de Lucia, Irmã Dulce, Grande Otelo, Mandela, Nelson Rodrigues, Villa Lobos, Cacilda Becker, Almodovar, Chico Buarque, Huxley, Antonio Callado, Mário Quintana, Orellana, Henfil, Jacob do Bandolim, Gaudí, Dalí, Saramago, Tarantino, Fernando Pessoa, Jung, Reich, Piaget, Mussum e muitos mais – e reconheço nesta pequena lista alcoólatras, fascistas, péssimos pais e mães, estelionatários, dependentes químicos, ateus, racistas, imorais, foras as indiscrições que nunca saberemos (às vezes nem as virtudes)… mesmo assim, merecem meu reconhecimento pelo seu contributo à minha vida, à arte e à civilização humana!

Endeusar ídolos é como acreditar em duendes, é chegar como o eleitor de um grande país do hemisfério norte, condenado a ter que escolher entre o louco e o gagá… que se matem os Deuses, que nossa vida não precisa deles. Só de inspiração e fé!

 

Gianmarco Bisaglia

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5 thoughts on “CRIADORES DO POSSÍVEL IV – QUEM SÃO NOSSOS ÍDOLOS? por Gianmarco Bisaglia

  1. Beatriz Cintra Labaki 6 de julho de 2024 at 06:52

    Sou de Bragança e não lhe conheço. Acho seu texto muito interessante e seus ídolos são mais ou menos os meus.
    Parabéns pelo texto!!!

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    1. Gianm 6 de julho de 2024 at 14:25

      Oi Beatriz, gratidão pela sua Participação.
      Obrigado por prestigiar o Portal!!

      Responder
    2. Mario Doro 6 de julho de 2024 at 14:25

      Nosso colunista é show, grato por acompanhar

      Responder
      1. Elenice Amaral Baratella 4 de agosto de 2024 at 18:15

        Show de primeira, Mário!
        Gian, não canso de dizer: sou fã do escritor e do músico que vc é. Abraço

        Responder
    3. Elenice Amaral Baratella 4 de agosto de 2024 at 18:17

      Olá Beatriz, bom te ver por aqui.
      Um abraço

      Responder

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