A Mística da Mulher Louca: De Medeia a Bertha Mason, Como a Literatura Perpetuou a Mulher Histérica

A loucura feminina, na literatura, nunca foi apenas um estado mental. Desde Medeia, na tragédia de Eurípides, até Bertha Mason, a “esposa louca no sótão” de Jane Eyre, a história da literatura ocidental está repleta de mulheres cuja sanidade é questionada não apenas como um elemento narrativo, mas como uma ferramenta de opressão. A história da loucura feminina é, portanto, também a história de como a sociedade patriarcal constrói e define o aceitável dentro da feminilidade, e de como essa construção moldou discursos médicos, filosóficos e institucionais ao longo dos séculos.

A Loucura Como Metáfora da Rebeldia

Na tragédia grega, Medeia é condenada não apenas pelo infanticídio, mas por sua recusa em se submeter ao destino das mulheres gregas. Sua ira e sua vingança são retratadas como um desvio da ordem natural, uma histéria que precisa ser punida. Aqui, podemos recorrer à leitura de Phyllis Chesler em Women and Madness, que aponta como mulheres que se recusam a desempenhar o papel de esposas subservientes ou mães devotadas foram, ao longo da história, rotuladas como loucas. Esta demonização da mulher insubmissa também se articula com o conceito de abjeção de Julia Kristeva, que define a repulsa social ao feminino não domesticado como um elemento estrutural das sociedades patriarcais.

Nos romances vitorianos, a figura da mulher louca se torna ainda mais emblemática. Em A Mulher no Sótão, Gilbert e Gubar examinam como personagens femininas são sistematicamente suprimidas, e a loucura é uma forma simbólica de resistência – ou de punição. Bertha Mason, de Jane Eyre, é um exemplo claro: ela é trancada, isolada e desumanizada, servindo como um espelho distorcido de Jane, que, ao se conformar ao ideal de feminilidade, sobrevive e prospera. Aqui, a loucura não é um mero desvio psicológico, mas um dispositivo narrativo que reforça hierarquias sociais e legitima o confinamento de mulheres fora do padrão hegemônico.

Histéria e Psiquiatria: O Controle das Mulheres Rebeldes

A ligação entre feminilidade e loucura não se limita à ficção. Em O Mal-Estar na Civilização, Freud estabelece a mulher histérica como uma figura que encarna tanto a irracionalidade quanto o desejo reprimido. A psiquiatria do século XIX reforçou esse estereótipo, diagnosticando mulheres insatisfeitas ou insubmissas com histeria, um fenômeno que Elaine Showalter explora em The Female Malady. Michel Foucault, em História da Loucura, analisa como o discurso médico foi fundamental na normatização do corpo feminino e na patologização de condutas que fugiam ao ideal burguês.

A histeria, enquanto diagnóstico, serviu como um código para rotular mulheres que fugiam do padrão de docilidade e dependência. Charlotte Perkins Gilman, em O Papel de Parede Amarelo, traduz essa experiência para a literatura, criando uma protagonista cuja loucura é exacerbada pelo isolamento imposto por um marido médico que insiste na “cura do repouso”. Esse conto dialoga diretamente com a experiência da própria Gilman, que sofreu tratamentos semelhantes. Este cenário evidencia como a loucura feminina foi historicamente construída como um desvio social antes de ser uma condição médica.

A Mulher Louca Como Arquétipo na Literatura Contemporânea

A loucura feminina persiste na literatura contemporânea, mas com novas camadas de interpretação. Em Wide Sargasso Sea, Jean Rhys reescreve a história de Bertha Mason, dando-lhe voz e contextualizando sua loucura como um produto da colonialidade e da opressão. A partir da leitura de Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, podemos perceber como a racialização do corpo feminino é um fator adicional no processo de desumanização da mulher louca, tornando-a uma figura interseccionalmente oprimida.

No romance feminista moderno, a loucura muitas vezes se manifesta como uma forma de emancipação. A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath, ilustra como as exigências sufocantes da feminilidade podem levar à dissociação mental. O colapso da protagonista Esther Greenwood não é apenas um episódio clínico, mas um sintoma de um mundo que não permite que mulheres sejam complexas e contraditórias. Esse debate se alinha à crítica feminista de Susan Bordo, em Unbearable Weight, que analisa como padrões de gênero e disciplina corporal levam mulheres ao colapso psíquico.

Loucura, Controle e Resistência

A mística da mulher louca é um reflexo das tensões entre feminilidade e poder. O que a literatura consagrou como histeria foi, muitas vezes, uma expressão de revolta contra um sistema que limita e define a experiência feminina dentro de moldes opressivos. Revisitar essas personagens e suas histórias é um passo essencial para compreender como narrativas de loucura ainda são usadas para disciplinar, silenciar e estigmatizar mulheres que ousam existir fora dos limites impostos.

A análise de escritoras e teóricas como Showalter, Chesler, Kristeva e Bordo nos permite perceber que a loucura feminina, na literatura e na vida, é uma narrativa socialmente construída. No fim, a história da mulher louca na literatura é também a história da própria literatura: quem tem o direito de narrar, e quem tem sua história escrita por outras mãos. Hoje, ao resgatar essas figuras e recontá-las, estamos também subvertendo esse paradigma, reivindicando novas formas de representação que não reduzam a complexidade feminina a uma patologia ou um espetáculo de horror.

 

Tamy Simões

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