Criadores do Possível X – É DA LATA! Reflexões sobre qualidade e autenticidade… por Gianmarco Bisaglia

Eu vejo a vida melhor no futuro
Eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia
Que insiste em nos rodear
Eu vejo a vida mais clara e farta
Repleta de toda satisfação que se tem direito
Do firmamento ao chão

(Lulu Santos é “da lata”!)

 

Nos anos 80 o navio Solana Star traficava 22 toneladas de marijuana para os EUA – navegando na costa brasileira, precisou de reparos no motor – os tripulantes, com medo de serem presos, jogaram toda a carga o mar: 13 mil latas com 1,5 kg de maconha da melhor qualidade.

As latas chegaram às praias do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul, fazendo a festa de surfistas, pescadores e usuários de todo tipo! O episódio ficou conhecido como “verão da lata”, e também cunhou a paulistana expressão “é da lata” como gíria indicativa de algo de “qualidade e excelência”, como foi reconhecida a cannabis tailandesa, na época largamente apreciada no Bixiga, Jardins e na emergente Vila Madalena”, ao embalo do efervescente rock nacional e do clima progressista pós ditadura militar.

Lembrei do episódio como pano de fundo para falar das diferenças entre o produto autêntico e as cópias baratas.

Assisti há alguns dias uma banda de pop rock de alguns amigos apresentar seu trabalho autoral e algumas releituras. Estavam à vontade com uma plateia curiosa, amigável e qualificada, onde sentiram-se à vontade para apresentar canções sinistras, partilhar convicções políticas, dar risada com os próprios erros e provar que não precisam provar nada prá ninguém! (obrigado Renato Russo!). Eles são da lata!

Algumas horas depois outra experiência: num restaurante popular lotado de gente, assistimos um rapaz se apresentando com playback, em insalubres 100 decibéis, somados à pouca capacidade do suposto cantor de entender os conceitos básicos de ritmo e afinação. Duas horas ouvindo “clássicos” do cancioneiro popular em altíssimo e mal interpretado som! Definitivamente não é da lata!

Como músico e compositor fico feliz por ver alguém criando, saindo da mesmice e deixando sua marca – nem sempre vamos agradar a todos, mas o artista, como bom profissional, deve exercer seu direito (e o dever) de trazer coisas novas para a sociedade, enriquecendo nosso contexto cultural.

Evidente que sempre lidamos com o medo e o risco que comporta toda ideia nova. No meio empresarial, percebo que poucos funcionários tem a coragem de encarar um projeto de inovação – se der errado podem comprometer seu emprego… assim ficam na zona de suposta segurança, nem criativos, nem improdutivos, esperando a sua aposentadoria que pagará os Prozacs e terapias futuras.

Aprendi que fazer música ao vivo é um tremendo exercício criativo – soma a capacidade de rápida leitura de cenário com a habilidade de apresentar repertório que equilibra músicas conhecidas, que engajam as pessoas, com as composições menos executadas, que encantam, inspiram, excitam a curiosidade, ampliando o gosto musical e apreço pelos gêneros apresentados. Nesse contexto colocamos também nossas próprias composições, desnudando nossos medos e testando ouvidos que estranharão o novo, apenas por ser novo, mas que com o tempo cantarão conosco. Afinal se não cantamos nossas próprias músicas, quem canta? Isso faz com que nosso grupo seja “da lata”!

Vejo que muitos músicos, assim como profissionais de qualquer área, tem a oportunidade na lide diária de fazer o seu melhor – quando apenas repetimos o que já deu certo, ou que se supõe, vai agradar às pessoas, estamos faltando com a nossa divina capacidade de Criação, jogando o jogo medíocre do “lugar comum”, e assim sobrevivendo mais um dia.  O banal quase sempre gera aplauso, mas com o tempo deixa o protagonista numa bolha de onde não conseguirá sair, pois perdeu sua capacidade de criar. Quem pretende o caminho fácil, vai entregar baixa qualidade e pouca diversidade, ficando condenado a vida inteira a cantar “Boate Azul”… e nunca será “da lata…” (*)

Por outro lado, respeito e admiro quem corre riscos, supera limites pessoais e provoca mudanças no meio em que atua, aprendendo com os erros e buscando sua identidade no mundo – estes fazem a diferença, como a banda dos meus amigos que compartilharam com emoção e ousadia seu autêntico trabalho autoral.

No mundo tem muita gente que olha a capa do livro e acredita já ter compreendido seu conteúdo – alguns até posam de especialistas, convencem algumas pessoas, mas não conseguem enganar todo mundo o tempo todo. Há quem leia o livro, entenda o seu significado e a partir desse conhecimento inova, traz luz a problemas antigos, inspira e incomoda pessoas com suas posições, pois sabe que aquele que deseja agradar a todos, não agrada a ninguém.

Assim fica o recado! E você leitora ou leitor – é “da lata”??

 

Microconto bônus – “Verão da Lata”

Em 88, encontrei numa lata toda felicidade…

 

(*) Ei! Também canto “Boate Azul”, sem preconceito!!

Gianmarco Bisaglia

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