O meio-fio é uma fronteira paradoxal: não é rua nem calçada, mas o entrelugar onde corpos hesitam, descansam ou transitam. É, portanto, uma imagem fértil para pensar a bissexualidade feminina na literatura e na cultura latino-americana. Historicamente, essas mulheres foram empurradas para a beira: nem totalmente visíveis na celebração da homossexualidade, nem plenamente aceitas no regime heterossexual. Do mesmo modo, suas vozes literárias ocuparam um espaço de margem, lugar instável, mas também estratégico, de onde se pode enxergar tanto o centro quanto as periferias.
Ler a literatura latino-americana através da lente da bissexualidade feminina é traçar um mapa fragmentado, cheio de desvios e curvas. Não se trata de buscar identidades fixas, mas de reconhecer escrituras que habitam o trânsito, a contradição e a multiplicidade. Escritoras como Silvina Ocampo, Cristina Peri Rossi e Rosario Castellanos, entre outras, abriram fissuras no cânone ao colocar em cena afetos que escapam da linearidade. Suas obras são testemunhos de uma resistência que se dá não apenas contra a censura externa, mas também contra a tentação de reduzir o desejo feminino a uma narrativa única.
Essas cartografias do meio-fio não se restringem ao passado. Na literatura contemporânea, vozes como as de Lina Meruane, Camila Sosa Villada e outras autoras latino-americanas continuam a explorar a bissexualidade como uma linguagem de atravessamento: entre gêneros, entre corpos, entre fronteiras políticas e culturais. O que emerge dessas escritas não é apenas a reivindicação de uma identidade, mas a afirmação de uma poética do entre, capaz de iluminar as zonas de sombra da experiência latino-americana.
A margem como território
A literatura latino-americana, desde suas origens, lidou com o problema da margem. Escritores e escritoras refletiram sobre a tensão entre centro e periferia, colônia e metrópole, tradição e modernidade. Nesse contexto, a bissexualidade feminina surge como uma margem dentro da margem: não apenas marcada pela subalternidade de gênero, mas também por um desejo que não encontra reconhecimento pleno em nenhuma norma.
A filósofa Judith Butler, em Problemas de Gênero, já apontava que toda identidade sexual carrega em si a instabilidade da performance. No caso latino-americano, essa instabilidade é multiplicada pela história colonial, pelas políticas de repressão e pela centralidade da família heteronormativa. As mulheres bissexuais, ao escrever e representar seus afetos, transformam essa precariedade em recurso estético. O meio-fio, então, torna-se uma metáfora não da indecisão, mas da potência criativa de quem habita o intervalo.
Vozes pioneiras
Silvina Ocampo, ainda que não tematize de modo explícito a bissexualidade, oferece em seus contos imagens de desejo que transbordam a lógica binária. Em La furia (1959), personagens femininas se enredam em relações de intimidade e fascínio que desafiam classificações. Cristina Peri Rossi, em obras como La nave de los locos (1984), leva adiante essa desconstrução ao colocar em cena personagens cujos afetos atravessam fronteiras sexuais e nacionais. Já Rosario Castellanos, em sua poesia e ensaios, abre caminho para pensar a experiência feminina mexicana em toda a sua complexidade, insinuando sempre a existência de múltiplos modos de amar.
Essas autoras não se nomeavam necessariamente como bissexuais. Mas suas obras deixam rastros de afetos desviantes, sinais de uma subjetividade que se recusa a ser aprisionada em categorias fixas. Como observa Adrienne Rich em seu célebre ensaio Heterossexualidade compulsória e existência lésbica (1980), a invisibilização das experiências não heterossexuais das mulheres é uma operação política. No caso latino-americano, essa operação ganha ainda mais força, pois se articula com o peso da tradição católica e patriarcal.
Cartografias contemporâneas
Na virada do século XXI, a literatura latino-americana assiste à emergência de vozes que assumem a bissexualidade não mais como sugestão, mas como eixo central de sua poética. A chilena Lina Meruane, em romances como Sangre en el ojo (2012), apresenta narradoras que circulam entre relações heterossexuais e homossexuais, evidenciando como o desejo se articula com a doença, a cegueira, a vulnerabilidade. Camila Sosa Villada, escritora e atriz argentina, em Las malas (2019), não apenas narra a vida de travestis em Córdoba, mas também inscreve uma visão do desejo como fluxo múltiplo, que atravessa corpos e desafia categorias.
Essas autoras revelam que a bissexualidade não é apenas uma questão de orientação sexual, mas uma lente crítica. Trata-se de escrever a partir do entre: entre gêneros literários, entre realismo e fantasia, entre memória e invenção. É nesse sentido que podemos falar em cartografias: mapas que não são estáticos, mas sempre abertos, incompletos, prontos a serem redesenhados.
Cultura e resistência
A presença de mulheres bissexuais na literatura não se restringe ao campo estritamente literário. Na música, nas artes visuais, no cinema latino-americano, é possível encontrar figuras que tensionam o mesmo entrelugar. Cantoras como Chavela Vargas, cuja vida amorosa atravessou relações com homens e mulheres, se tornaram ícones de uma rebeldia que ultrapassa fronteiras sexuais. Artistas contemporâneas como a mexicana Julieta Venegas e a argentina Marilina Bertoldi, ao explorar ambiguidades afetivas em suas composições, também contribuem para essa cartografia expandida.
A cultura, portanto, não apenas representa, mas produz realidades. Ao inscrever a bissexualidade feminina em canções, filmes e poemas, a América Latina produz novos modos de imaginar o corpo e o desejo. Contra o apagamento e a estigmatização, essas mulheres reivindicam o direito de habitar o meio-fio sem serem empurradas para fora dele.
Conclusão
Pensar a bissexualidade feminina na literatura e na cultura latino-americana é mais do que recuperar autoras esquecidas ou mapear personagens desviantes. É compreender que a própria lógica cultural da região é atravessada pelo trânsito, pela hibridez, pela fronteira. A escrita dessas mulheres não ocupa o centro nem aceita a marginalização absoluta: prefere o meio-fio, esse espaço estreito, mas pleno de possibilidades.
As cartografias aqui delineadas não pretendem ser definitivas. Pelo contrário, convidam à leitura atenta, à escuta dos silêncios, à busca por rastros que escapam ao olhar apressado. Pois é justamente no entre, nesse espaço onde tudo parece provisório, que a literatura latino-americana encontra algumas de suas mais intensas expressões de liberdade.