Tradwife: a farsa romântica da submissão

Introdução

Nos últimos anos, assistimos à ascensão de uma nova tendência nas redes sociais: a figura da “tradwife”, ou “esposa tradicional”. Essa mulher é apresentada como devotada ao lar, ao cuidado do marido e à maternidade, frequentemente envolta em uma estética retrô que remete às décadas de 1940 e 1950. Vídeos com a hashtag #tradwife já ultrapassam 200 milhões de visualizações no TikTok, promovendo uma estética cuidadosamente curada de feminilidade passiva, domesticação voluntária e romantização da vida reclusa e submissa.

Contudo, o que se apresenta como escolha individual de estilo de vida precisa ser lido dentro de uma lógica mais ampla: a de reação conservadora ao avanço dos direitos das mulheres e das dissidências. Como aponta Susan Faludi em Backlash (1991), as conquistas do feminismo são invariavelmente seguidas por um contra-ataque ideológico, frequentemente mascarado de liberdade de escolha. A tendência tradwife é um exemplo sofisticado desse backlash, pois opera por meio da sedução visual e da linguagem afetiva.

Este artigo propõe analisar criticamente o fenômeno tradwife como uma narrativa política mascarada de estilo de vida. Buscaremos compreender suas raízes ideológicas, suas relações com discursos de extrema-direita e conservadorismo religioso, seus vínculos com o neoliberalismo afetivo e, sobretudo, suas implicações para as mulheres latino-americanas — cuja realidade social está muito distante do ideal estetizado de uma vida doméstica harmoniosa. Utilizaremos para isso autoras como Angela Davis, Silvia Federici, bell hooks, Rita Segato, Lélia Gonzalez e Julieta Paredes, numa abordagem interseccional e decolonial.

O Surgimento da Estética Tradwife nas Redes Sociais

O movimento tradwife, embora contemporâneo, tem raízes nos ideais do conservadorismo ocidental do pós-guerra. Com o advento das redes sociais, principalmente o TikTok, essa estética ganhou nova roupagem, apresentando-se como “inofensiva”, charmosa e voluntária. O que antes era imposto como norma moral — a mulher recatada, submissa, cuidando do lar — retorna como tendência, agora mediada por filtros, vídeos coreografados e roteiros de romantização da domesticidade.

Há um alinhamento evidente com os discursos da chamada alt-right, que usa estratégias culturais para promover ideologias reacionárias. A “esposa tradicional” aparece não apenas como estilo de vida, mas como símbolo de resistência ao feminismo, ao multiculturalismo, à liberdade sexual e à modernidade. Segundo Angela Nagle, em Kill All Normies (2017), esse tipo de engajamento estético com ideias reacionárias tornou-se uma das principais formas de recrutamento da extrema-direita nos meios digitais.

A estética vintage associada às tradwives — vestidos rodados, maquiagem leve, cozinhas coloridas e fala mansa — é apresentada como um retorno ao “natural”. Contudo, como afirma Naomi Wolf (1991) em O Mito da Beleza, a construção do ideal feminino sempre serviu a um propósito de controle. A beleza, a recatada aparência e a doçura não são isentas de política: são ferramentas moldadas para a dominação.

A Ideologia por Trás da Estética: o Culto à Submissão

A estética da tradwife sustenta uma ideologia profunda: a crença de que o papel natural da mulher é o de cuidar do lar, servir ao marido e educar os filhos. Essa crença se apresenta como escolha individual, mas está profundamente imbricada com discursos religiosos, nacionalistas e neoliberais que promovem a desigualdade de gênero como uma ordem moral. Como afirmou Simone de Beauvoir (1949), “não se nasce mulher, torna-se mulher”, e esse tornar-se é moldado por estruturas sociais que atuam para reproduzir o status quo.

Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa (2004), mostra como o surgimento do capitalismo moderno exigiu a domesticação dos corpos femininos, através da imposição da maternidade compulsória e da separação entre o espaço público e o privado. A figura da esposa tradicional não é uma invenção inocente: ela está diretamente ligada à construção da economia moderna, baseada na exploração gratuita do trabalho reprodutivo das mulheres.

A lógica tradwife retoma essa estrutura, mas sob nova linguagem. A obediência torna-se glamourizada. A submissão, reencenada como liberdade. O cuidado, transformado em destino divino. O amor romântico é apresentado como redentor — mesmo quando exige silêncio, renúncia e invisibilidade. É nesse ponto que o discurso da escolha colapsa, pois não há liberdade real quando se opta por repetir estruturas historicamente opressoras.

A Realidade da Mulher Latina: Trabalho, Violência e Injustiça Estrutural

Na América Latina, onde milhões de mulheres enfrentam violência doméstica, desemprego, informalidade, racismo e misoginia institucional, o ideal tradwife surge como uma fantasia de privilégio. É preciso perguntar: quem pode se dar ao luxo de “escolher” ser do lar, em uma região onde a maioria das mulheres são chefes de família, sustentam financeiramente seus lares e enfrentam jornadas duplas ou triplas?

Rita Segato (2016) afirma que o corpo da mulher é o primeiro território de dominação em qualquer estrutura patriarcal. A idealização da esposa submissa é, portanto, um dispositivo disciplinador que orienta como as mulheres devem se comportar para serem dignas de afeto, respeito ou proteção. Mas essa lógica não contempla as mulheres negras, indígenas, lésbicas, trans, nem as trabalhadoras domésticas que cuidam dos filhos das mulheres que performam o ideal tradwife.

Lélia Gonzalez, em seus escritos sobre o “racismo por denegação”, nos lembra que a mulher negra, na América Latina, nunca teve o direito de ser idealizada como esposa: ela foi historicamente construída como corpo servil, objeto de trabalho e desejo do outro. A “esposa tradicional” é, portanto, um ideal racializado e de classe — e não um arquétipo universal feminino.

A Economia do Lar: Quando a Submissão é um Privilégio de Classe

A maioria das influenciadoras que promovem o estilo de vida tradwife não realiza sozinha o trabalho doméstico que mostra nas redes. Há, por trás da estética da feminilidade servil, uma estrutura de terceirização invisível — geralmente composta por mulheres pobres e racializadas. Como afirma bell hooks (2000), “o feminismo que não interroga as desigualdades econômicas apenas repete o elitismo dos sistemas que diz combater”.

O lar, nesse contexto, torna-se uma empresa afetiva: tudo é limpo, decorado e nutrido para servir à manutenção do capital emocional do casal heterossexual. A “submissão” é, muitas vezes, um arranjo estético sustentado por trabalhadoras terceirizadas, invisibilizadas, que realizam o trabalho sujo enquanto a dona da casa aparece em vídeos assando pães e ensinando boas maneiras.

Como analisa Nancy Fraser, o neoliberalismo incorporou parte das pautas feministas para esvaziá-las: vende-se a ideia de empoderamento via estética, maternidade plena, autocuidado e escolhas individuais, enquanto se ignora a base material que permite tais escolhas. O discurso da tradwife, nesse sentido, é uma caricatura neoliberal da libertação.

A Periculosidade Política do Retorno ao Passado

O fascínio pelo passado — pelas roupas, pelos papéis definidos, pela família tradicional — não é isento de significado político. O movimento tradwife tem sido usado como instrumento de recrutamento por grupos extremistas que buscam restaurar valores “tradicionais” como forma de conter o avanço das pautas progressistas.

Susan Sontag (1975), em Fascinating Fascism, analisa como a estética pode servir para suavizar e tornar atraente ideologias totalitárias. A estética retrô da tradwife funciona nesse sentido: oculta sua base autoritária sob rendas e cores pastel. Masha Gessen (2017) mostra como regimes autoritários utilizam a nostalgia como ferramenta de controle — vender a imagem de um passado glorioso é uma estratégia para instaurar o medo do presente e o controle sobre o futuro.

Na América Latina, o discurso da “família tradicional” tem sido utilizado por lideranças políticas para atacar direitos sexuais e reprodutivos, promover projetos de lei antiaborto, censurar conteúdos escolares e reforçar papéis de gênero. A tradwife é, nesse contexto, o rosto aceitável de uma ofensiva reacionária.

Resistência, Complexidade e Descolonização do Gênero

Recusar o ideal tradwife não é atacar mulheres que optam pelo cuidado familiar ou pela vida doméstica. É criticar um modelo que apresenta a submissão como desejável, que romantiza a renúncia feminina e que apaga as desigualdades estruturais de classe, raça e território. Como afirma Julieta Paredes (2010), “a colonização impôs também uma forma de ser mulher”, e resistir a ela exige reinventar nossas subjetividades.

O feminismo latino-americano, com suas raízes nas lutas comunitárias, negras, indígenas e populares, oferece caminhos potentes para essa reinvenção. É preciso criar outros imaginários: em que o cuidado seja compartilhado, o amor não seja opressivo, o lar não seja prisão, e a liberdade não seja confundida com performance.

REFERÊNCIAS

Beauvoir, S. de. O Segundo Sexo. Nova Fronteira, 2009.

Davis, A. Mulher, Raça e Classe. Boitempo, 2016.

Faludi, S. Backlash: The Undeclared War Against American Women. Crown Publishing, 1991.

Federici, S. Calibã e a Bruxa. Elefante, 2017.

Fraser, N. Fortunes of Feminism. Verso, 2013.

Gessen, M. The Future is History. Riverhead Books, 2017.

Gonzalez, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar, 2020.

Hooks, B. O feminismo é para todo mundo. Rosa dos Tempos, 2018.

Nagle, A. Kill All Normies. Zero Books, 2017.

Paredes, J. Hilando fino desde el feminismo comunitario. 2010.

Segato, R. La guerra contra las mujeres. Traficantes de Sueños, 2016.

Sontag, S. Fascinating Fascism. 1975.

Wolf, N. O Mito da Beleza. Rocco, 1992.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tamy Simões

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