Guerra Comercial, BRICS e Padrão Dólar.

A guerra comercial conduzida por Donald Trump tem como prerrogativa a proteção de empregos americanos e a revitalização da indústria nacional do país, porém esses dois fatores não explicam toda a história. Nas entrelinhas de seus discursos, inclui-se uma perda de hegemonia norte-americana ao padrão-dólar, pilar do poder econômico e dos Estados Unidos há mais de meio século.

No século XIX e início do XX, o sistema monetário internacional baseava-se no padrão-ouro. Nesse arranjo, cada moeda tinha seu valor lastreado diretamente em ouro, o que impunha disciplina monetária aos governos e garantia estabilidade cambial. Por outro lado, esse modelo restringia a capacidade de expansão da oferta monetária e de resposta a crises econômicas. A Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão fragilizaram tal estrutura, e, em 1944, já no contexto final da Segunda Guerra Mundial, as potências reunidas em Bretton Woods instituíram um novo sistema: as moedas nacionais teriam taxas de câmbio fixas em relação ao dólar, e este, por sua vez, seria conversível em ouro à taxa de US$ 35 por onça. Assim se inaugurou o padrão-dólar, ancorado no metal precioso e respaldado pela força econômica dos Estados Unidos, então a maior potência industrial e detentores de cerca de dois terços do ouro monetário mundial.

Esse sistema vigorou até 1971, quando pressões decorrentes dos crescentes gastos com a Guerra do Vietnã e programas sociais levaram o governo norte-americano a emitir dólares em volume superior às reservas em ouro disponíveis para lastro. Países como França e Alemanha passaram a exigir a conversão de dólares em ouro, acelerando a perda das reservas norte-americanas. Em agosto de 1971, diante do risco de colapso do sistema, o presidente Richard Nixon suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, marcando o fim do padrão-ouro e o início de um regime fiduciário global, no qual o valor do dólar passou a depender exclusivamente da confiança internacional na economia e na estabilidade política dos Estados Unidos.

A partir de então, Washington empenhou-se em estabelecer novos mecanismos de sustentação para sua moeda. Um dos mais significativos foi o acordo firmado em 1973 com a Arábia Saudita e outros países da OPEP, que estabeleceu a venda exclusiva de petróleo em dólares, originando o chamado “petrodólar”. Tal arranjo garantiu demanda constante pela moeda norte-americana, uma vez que qualquer país importador de petróleo precisava adquiri-la previamente.

O privilégio associado ao dólar confere aos Estados Unidos vantagens, a possibilidade de financiar déficits de grande magnitude a custos reduzidos, emitir moeda para liquidar dívidas externas sem riscos cambiais relevantes e utilizar o sistema financeiro global como instrumento de pressão política. O controle sobre o acesso ao dólar traduz-se, portanto, em capacidade de influenciar parcela significativa do comércio e das finanças mundiais, tornando as sanções econômicas norte-americanas, em muitos casos, mais eficazes que bloqueios militares.

Entretanto, recentemente, emergiram iniciativas capazes de desafiar essa hegemonia. O BRICS evoluiu de um fórum político para uma plataforma de cooperação econômica com propostas de redução da dependência em relação ao sistema financeiro dominado pelo Ocidente. Entre tais iniciativas destacam-se mecanismos de pagamentos bilaterais em moedas locais, a criação de um sistema próprio de compensação para contornar o SWIFT e discussões sobre a implementação de uma moeda comum, possivelmente lastreada em ouro ou em commodities.

No setor privado, já se verificam transações internacionais sem o uso do dólar, eliminando custos de conversão e diminuindo a necessidade de reservas em dólares.

Para os Estados Unidos, esse movimento constitui um desafio. A ampliação das transações diretas entre países pode reduzir a demanda global por dólares, ocasionando desvalorização da moeda e elevação dos custos de importação. Reservas internacionais, hoje fortemente concentradas em dólares, poderiam migrar para outras moedas ou ativos tangíveis, como ouro. Mais grave ainda, a capacidade de Washington de impor sanções econômicas seria reduzida, já que seus adversários poderiam realizar transações fora do alcance do sistema financeiro sob influência norte-americana.

Sob essa perspectiva, a guerra comercial conduzida por Donald Trump revela-se também de conter o avanço econômico e tecnológico de um país que lidera esforços de desdolarização, de dificultar o fortalecimento do BRICS e de reafirmar o papel indispensável dos Estados Unidos no comércio mundial.

A história demonstra que transições na ordem monetária internacional raramente se dão de forma pacífica. A substituição do ouro pelo dólar como padrão global foi acompanhada por profundas transformações econômicas e políticas. Caso o BRICS avance na implementação de transações diretas e na criação de uma moeda lastreada em ouro ou commodities, poderá ter início uma nova transição, desta vez, uma disputa pela moeda de referência global travada não apenas por meio de tarifas e tratados, mas no cerne do sistema financeiro internacional.

 

José Victor

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