Violência não é um esporte.

O que a invasão do torcedor para agredir um jogador do Caxias revela sobre o que entendemos como violência.

 

Passei as últimas semanas ouvindo relatos de crianças que se veem em situação de sofrimento pelas mãos de adultos e de adolescentes que passaram por isto em suas infâncias. Depois deste trabalho persistente, assistir um homem arrastar em seu colo – que deveria ser um espaço de proteção e acolhimento – uma criança para que ele agredisse pelas costas um jogador de futebol, eu me vejo cansada. Pra ser sincera, é uma exaustão. Se este homem foi capaz de cometer este absurdo publicamente em frente a tantas câmeras, do que será que ele é capaz entre as quatro paredes do lar?

Quem defende de fato os direitos das crianças e dos adolescentes entende como violência todo tipo de violação à dignidade e ao desenvolvimento peculiar da infância e da adolescência. Quando é por uma razão torpe e fútil assim parece ser ainda mais perverso.

Futebol é um esporte e, naturalmente, nele pode-se vencer ou perder. O jogo entre o Internacional e o Caxias terminou em 1 a 1 no tempo normal e com vitória do Caxias por 5 a 4 nos pênaltis. O motivo da briga generalizada que se iniciou depois do apito final foi a comemoração ofensiva do atacante Wesley Pomba, do Caxias, que fez um sinal atrás das orelhas como se quisesse ouvir o estádio do Beira-Rio. Junto com o torcedor sobre quem estou falando, alguns jogadores do Inter não gostaram da comemoração e correram em sua direção. O torcedor deu um chute nas costas de um jogador.

O Internacional assumiu o compromisso de identificá-lo e puni-lo, mas a reflexão que proponho não é sobre isto. A objetificação da criança é tão latente que, durante o vídeo (que me recuso a compartilhar, mas já vou chegar neste ponto) o homem não parece nem sequer perceber a criança que carrega. Faz tudo como queria fazer até ser retirado pelos seguranças. A criança ali figura como um fardo que ele arrasta por onde vai, como se ela não pudesse ver, ouvir ou opinar.

Preciso dizer a disparidade entre as cenas e a ideia de prioridade absoluta defendida nos aspectos da doutrina da proteção integral? É uma criança. Um sujeito de direitos que está atravessando uma fase em que absorve muito do que vê e escuta. Ela é quem chamam de “futuro do país” e, paralelamente, é alvo de uma brutalidade assim.

Não vou me estender na atitude do torcedor porque já ficou nítido o absurdo e a total barbárie. Dirijo a reflexão agora àqueles que estão minimizando a atitude, dizendo que a criança não apanhou e que a rivalidade faz parte do mundo do futebol; que o homem teve um lapso de irresponsabilidade. Percebam aqui que ao homem sempre é permitido o lapso de loucura; a desconexão momentânea de seus valores. Se neste caso figurasse uma mulher com uma criança no colo agredindo alguém, estou certa de que veríamos um cenário absolutamente diferente. Mesmo porque ainda há quem assista a cena e, ao invés de reconhecer a crueldade do torcedor, escolhe perguntar onde está a mãe da criança. Como se mesmo em sua ausência a mãe fosse totalmente responsável pela conduta do pai. Dois pesos e duas medidas?

Sabemos que pau que bate em Maria não bate em Francisco, mas este caso evidencia a persistência patriarcal de culpar a mulher em qualquer hipótese. Se ela não está envolvida na situação, o questionamento de “onde ela está?” parece natural. Até quando não está presente a mulher é culpada.

Por fim, quero expressar minha tristeza ao perceber que pouquíssimas pessoas e veículos de comunicação estão preocupados em ocultar o rosto da criança. Como se esta situação insana não fosse suficiente, muitos expõem seu rosto e compartilham o vídeo violento. Não se deve compartilhar vídeos violentos que envolvam crianças, mesmo quando estas aparecem como testemunhas. Não é porque a agressão física não se dirigiu a ela que a circunstância é menos severa. Ela, como criança, teve sua dignidade violada ao assistir tão de perto esta violência mais arbitrária que nunca. E não custa lembrar que há pessoas que se deleitam assistindo este tipo de cena e julgam ser realmente cômico. É preciso parar de alimentar esta cadeia de ódio.

Ao invés se questionar a ausência da mãe, que tal colocarmos em cheque nossa percepção de violência? Biblicamente é possível refletir que a trave está no nosso olho, mas não nos impede de ver o argueiro no olho do outro. Esta cegueira moral não pode nos impedir de enxergar a verdade. Nossa Pátria Amada, Mãe gentil não pode adormecer em paz enquanto nossas crianças são expostas à perversidade dos homens. Violência não é nem pode ser um esporte. Todo mundo sai perdendo.

 

Anna Luiza Calixto

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