Pois é, mais um homem foi preso por abuso sexual contra crianças e adolescentes. Infelizmente, nada de novo. Mas o que tem tomado os nossos feeds é o fato de que o autor desta violência, neste caso, é o ator José Dumont, artista com mais de quarenta anos de carreira que assinava contrato atrás de contrato, com parcerias futuras planejadas inclusive com a TV Globo.
Lamentavelmente casos assim têm que acontecer para chamar a atenção de um grupo maior de pessoas, fazendo com que alguns artistas e figuras públicas se posicionem pela primeira vez sobre um tema tão sério, que atravessa nossas vidas dia após dia, violando os direitos fundamentais de milhares de meninos e meninas.
Mas o foco desta reflexão não é este, mas sim o porquê de ambas as manchetes que anexei neste post serem tão problemáticas.
A primeira, da revista Quem, afirma que o ator foi preso em flagrante por posse de “pornografia infantil”. Nós que atuamos diretamente na luta pelo direito à dignidade sexual de crianças e adolescentes NÃO utilizamos esta expressão.
Pornografia teoricamente (mesmo que eu discorde disto e vocês sabem o porquê) é uma ferramenta pensada para o entretenimento adulto. O fato de que este instrumento é modelado para um nicho masculino bastante específico e de que representa um verdadeiro desserviço à educação sexual, merece um outro texto e, portanto, opto por não entrar neste mérito aqui.
O que muitos adultos produzem – e que foi encontrado nos arquivos virtuais do ator – tem outro nome (e com razão). José devidamente foi preso porque armazenava CENAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES.
Qual é a diferença?
É que nós, enquanto rede de proteção, não podemos admitir que vídeos e fotos de violência sexual, sendo de abuso sexual ou de estupro de vulnerável, possam ser lidas como uma maneira de entreter o público adulto. Violência não é entretenimento.
São cenas reais – não encenadas – de violência sexual contra crianças e adolescentes. Aqueles meninos e meninas não estão encenando nada com fins recreativos ou pedagógicos, mas estão sendo filmados enquanto se tornam vítimas das piores formas de violências. E se tem alguém filmando é porque tem alguém disposto a assistir. Sim, exatamente. Existem muitos adultos que se sentem excitados sexualmente por cenas de crianças e adolescentes sendo violentados sexualmente. E isto não é pornografia, porque não é entretenimento.
Vamos à manchete da Veja. Ela anuncia que o ator foi preso por PEDOFILIA. Acontece que a pedofilia é um transtorno mental de disfunção da preferência sexual. É uma psicopatologia.
Portanto, pedofilia não é crime.
Não, você não leu errado e não precisa ir embora desesperado para me denunciar.
O que eu quero dizer é que o Código Penal brasileiro não se refere em momento nenhum à prática de pedofilia. Ele fala de crimes sexuais, como o estupro de vulnerável; a satisfação da lascívia de outrem; a exploração sexual e a satisfação da própria lascívia mediante a presença de uma criança ou de um adolescente, o que chamamos de voyeurismo ou de exibicionismo.
Pedófilos apresentam, portanto, uma disfunção de suas preferências sexuais. Há casos de pessoas que sentem-se excitadas sexualmente através de estímulos de conotação sexual com fraldas, berços e chupetas.
Então, sim, é um TRANSTORNO. Pessoas doentes precisam ser TRATADAS e não PRESAS.
Porque a nossa Lei não criminaliza – e nem poderia – transtornos mentais, mesmo porque não é possível punir uma pessoa pelo que ela pensa ou deixa de pensar. Estas são questões de ordem psicológica e não jurídica.
Com isto eu estou dizendo que o José Dumont não deve ser preso e sim tratado? Não.
Ele precisa ser investigado e punido porque ele não necessariamente é um pedófilo – e este é o grande problema com manchetes desta natureza.
Só quem pode afirmar que o José ou que qualquer pessoa sofre de pedofilia é alguém especializado na área, como um psiquiatra, por exemplo.
E qual é o problema de sair publicando que ele é um pedófilo?
Primeiramente, nós não temos autoridade para sair distribuindo um laudo tão sério à torto e à direito. Porque infelizmente a defesa de um abusador sexual pode se valer deste discurso midiático um tanto quanto sensacionalista para afirmar que ele sofre de pedofilia é que, portanto, precisa ser tratado e não punido.
Mas não é tudo a mesma coisa?
Não, não é nem de longe a mesma coisa. Porque nem todo pedófilo é um abusador sexual e nem todo abusador sexual é um pedófilo.
Ou seja, o pedófilo tem a responsabilidade de buscar o tratamento apropriado. Sendo tratado, ele pode passar a vida inteira sem violentar nenhuma criança.
Já um abusador sexual se torna um abusador sexual a partir do momento em que ele violenta sexualmente uma criança. Isto não faz dele um pedófilo. E mesmo não apresentando um quadro neurodivergente, ele pode abusar sexualmente de inúmeras crianças.
E por que ele abusa sexualmente se não é doente?
A resposta é simples, mas não é óbvia.
Ele abusa sexualmente de crianças e adolescentes porque ele é socialmente autorizado pra isto.
Com que intenção?
Ele abusa para humilhar, dominar, exercer poder e submeter a situações vexatórias com tons de tortura.
E por que ele faz isto?
Principalmente para se sentir no poder.
Podem observar que muitos abusadores sexuais, como o José, têm filhos e mantém uma vida sexual ativa sem nada visualmente atípico. Eles abusam de crianças e adolescentes, mas não porque sentem atração sexual por eles, e sim porque a sociedade evidencia que ele tem este poder a cada vez que culpa a vítima pela violência que ela sofreu, deixando de puni-los.
É válido acentua que aqui estou utilizando pronomes masculinos por uma questão normativa e linguística, mas sabemos que ambos os gêneros podem sofrer esta violência, ao passo que ambos também podem praticá-la.
A filósofa pós-estruturalista norte-americana Judith Butler evidencia esta trinca entre sexo, violência e poder em sua obra Problemas de gênero – Feminismo e subversão de identidade, que já se tornou um verdadeiro clássico da teoria feminista.
Ela afirma que toda relação de violência começa com uma relação de poder. A pessoa que abusa sexualmente de uma criança faz isto para, sobretudo, exercer seu poder sobre ela. Não por um quadro de neurodivergência que a obriga a fazer isto. Com isto eu quero dizer que nem todo abusador é doente.
Este o problema de sair distribuindo laudo como comentarista na Internet para qualquer abusador. Ele pode fazer proveito do uso popular da palavra pedofilia para tentar forçar um enquadramento médico nesta que é, comprovadamente, uma doença.
O ator inclusive afirmou, em depoimento prestado à polícia, que as imagens em seu celular e computador eram na realidade resultados de estudos que ele estaria fazendo para um futuro papel – o que não justifica, em nenhuma hipótese, violar o artigo 241-B do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069|1990), que proibi expressamente o armazenamento e o compartilhamento de imagens e vídeos que contenham cenas de violência sexual contra crianças e adolescentes sem fins judiciais de investigação.
Mesmo se ele estivesse estudando para um papel, será que seria mesmo necessário assistir diversas cenas de estupro de vulneráveis? E como isto explicaria os registros das câmeras de vigilância que flagraram Dumont abusando sexualmente de um adolescente de doze anos cuja identidade deve ser absolutamente preservada.
O ator foi denunciado por vizinhos após obrigar o menino, do qual se aproximou por ser seu fã, a trocar beijos na boca e carícias. Além da violência sexual, José extorquiu o adolescente, fazendo proveito da situação de vulnerabilidade socioeconômica do menino para oferecer ajuda financeira e presentes, utilizando-se de brechas para fazer investidas severas e carícias íntimas, que acabaram sendo captadas pelos vídeos de segurança apresentados como provas à justiça.
Pode ser que o José realmente seja pedófilo? Pode.
Somos nós os responsáveis por este diagnóstico tão sério e determinante para o julgamento deste caso? NÃO.
E, mesmo que ele fosse um pedófilo, ele teria a responsabilidade civil de buscar tratamento. Isto também não justificaria o fato de que um adolescente foi vítima de violência sexual e, por isto, precisa ser alvo da rede de proteção através das medidas cabíveis imediatamente, que incluem atendimento psicológico urgente para trabalhar os danos e consequências desta violência tão dura, ainda mais por ter sofrido pelas mãos de alguém que, até então, para ele era sinônimo de admiração e respeito.
Moral da história. Não é porque você está atrás de uma tela munido de um perfil com trocentos milhões de seguidores ou porque você assina um portal de jornalismo online que isto te torna um especialista com autoridade para falar detalhadamente sobre o assunto ou um juiz com a caneta na mão pronto para sentenciar um crime. Muito menos um psiquiatra com autorização e autoridade para se responsabilizar por um laudo.
Precisamos aprender coletivamente a tratar a violência sexual contra crianças e adolescentes como o assunto sério que ela representa, aludindo à dor e muito sofrimento para vítimas de abusadores que, torno a dizer, nem sempre são pedófilos.
“Ah, mas não é você quem vive dizendo pro povo se posicionar e falar sobre violência sexual na Internet?”
Sim, sou eu mesma.
Isto NÃO quer dizer que é pra você assinar laudo de pedofilia pra ninguém.
Quando peço pra todo mundo falar sobre este assunto, está implícito pela seriedade do tema que é pra falar com respeito às vítimas, com responsabilidade pelos fatos e com coerência argumentativa.
Nunca disse pra vocês saírem dizendo qualquer coisa sobre qualquer assunto, porque Internet não é terra de ninguém, é sim arena pública para discussões da maior importância.
Para discutir temáticas como abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes, pessoas estudam e dedicam seu tempo, trabalho e talento à prevenção e ao enfrentamento destes problema.
Em respeito a esta luta, bora pesquisar mais e embasar nossas opiniões em mais do que meros achismos comprometedores.
Porque para problemas reais precisamos de soluções reais. Porque as suas consequências também são reais e avassaladoras para cada um e cada uma de nós. Inclusive para crianças que adolescentes que são – ou deveriam ser – nossa prioridade absoluta.