Pés preparados para pular as sete primeiras ondas de um novo ano, permanece a certeza de que 2022 não sairá de nós no badalar da meia noite. Começam a emergir as típicas listas de metas para si; promessas para que os outros ouçam e objetivos para satisfazer a ninguém – que caem no esquecimento e voltam à tona a cada mês de dezembro, em que somos convidados a olhar para mais doze meses que se foram com o mesmo olhar procrastinado sobre aquilo que, supostamente, é desejado. Supostamente porque poucas destas metas nos conduzem ao encerramento do próximo ano com uma mudança substancial, com mais esperança do que neste.
Perder um ou outro quilo a fim de atender a padrões absolutamente inconsistentes em seus argumentos; viajar nas férias de inverno; ler ao menos um livro mensalmente; finalmente trocar de emprego e se organizar para otimizar o próprio tempo. A caneta pousa no papel e o preenche com ideias penduradas na cômoda – espaço ocupado por influências externas, compromissos individuais para que sejam leme para um novo ciclo que se aproxima. O vazio palpável de cada uma delas é perecível e, dificilmente, perdura para o próximo ano novo.
O que não nos convence é que qualquer onda, lentilha, dinheiro no bolso, pulo com o pé direito ou lista podem salvar o abandono anunciado pela omissão que não se prende a uma data específica, mas faz parte da pintura catastrófica que ajudamos a emoldurar. Não estamos falando dos quilos ou da organização, mas das metas que verdadeiramente importam. Coletivamente.
A cômoda passa por uma limpeza e, junto com ela, as ideias que, dia a dia dos 365 que se seguem, passam por metamorfoses naturais ao passo que cada um deles é uma oportunidade para repensar, flexibilizar e até mesmo riscar promessas que deixam de fazer sentido, sendo prontamente substituídas por ideias mais plausíveis com nossos valores e coerentes com os caminhos que tomamos – mediante situações adversas e circunstâncias contrárias ao imaginado. As promessas amadurecem, deixam de ser prioridades para atender à expectativa alheia e passam a compor o mosaico das reflexões empíricas – mesmo que não raro esquecidas.
Partindo deste pressuposto, o olhar mais positivo é capaz de ver que, coletivamente, deixamos 2022 com uma lista imensa de tarefas inacabadas. O ano não pede fogos de artifício, mas minutos de silêncio – que recusaremos, porque a última atitude que deve ser tomada quando perdemos evitavelmente um companheiro ou companheira é permanecer calados. Deve ser a hora do berro.
Imediatismo? Não. Urgência
A humanização não pode ser um processo temático, removido junto com a decoração luminosa. Para que compartilhamos flores e desejos de bênçãos para todos os nossos amigos virtuais se, em carne e osso, parecemos incapazes de dizer “bom dia” ao passar pela portaria do prédio e encontrar com o porteiro? De que servem as roupas brancas se tudo ao nosso redor se converte em cifrões cinzas em uma conformidade monocromática? Em que ponto nos perdemos para que um dia presentes valessem mais do que a presença de quem quer que seja?
A ilustração deste sentimento de procrastinação ao urgente e cegueira mediante o evidente é trazida por João Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas“, quando diz: “medo não, mas perdi a vontade de ter coragem”. A sensação de “quase cansaço, quase medo”; torna-se perigosa quando se aproxima da “quase indiferença” e números passam a significar tão somente números, e não vidas passadas a limpo em estatísticas. As metas sobre o outro perdem espaço em nossos planos, porque tudo o que há neles reflete nossa quase incansável ânsia por subir a interminável escadaria da ascensão pessoal.
Se cada um de nós, compartilhando da reflexão desta coluna, assumir a responsabilidade de entrar em um novo ciclo com um dos tijolos para a construção de um Brasil mais justo para nossos meninos e meninas, com resistência, afeto e comprometimento, restabeleceremos nossa vontade de ter coragem, organizando nossa esperança e tornando o nosso medo, semente para subverter a barbárie.
Ao passo em que celebramos, nesta época, o nascimento de um menino, não nos cabe renunciar aos direitos fundamentais de tantos outros. A paz que o menino Jesus trouxe ao mundo ao nascer manifestou-se sob a forma da inocência de uma criança. Um menino com promessas de bênçãos dentro da pobre manjedoura, bem como os lares pobres dos trinta mil jovens mortos anualmente no Brasil, em suas próprias manjedouras. Meninos Jesus.
Nascimento, renovação, esperança, fé. Acreditar e fazer-se valer dos melhores sentimentos, não tão somente em uma data peculiar, mas por mais 364 dias – de um ano que vai nascer – que são nada mais do que exponenciais oportunidades para praticarmos o maior dos milagres: amar.
O ano só é novo se, com ele, renova-se a nossa capacidade de ser consciente de si e perceptível ao outro. Que ele não nos traga nada, mas esteja de braços abertos para tudo o que temos para oferecer. Para nos levar a bordo de novas 365 oportunidades de sermos novos. Mais do que um feliz ano novo. Feliz ano todo. Feliz ano nosso.